O TEMPO NA MEDIDA DOS DEUSES
O turco abanou as mãos. Delas saíram pequenas gotículas, um anel que caiu, uma moeda de cinco zlotis. Era um pequeno valor em troca de uma flor. “But who is she?”, perguntou-lhe o vendedor de rosas. Não tinha muito mais que pudesse trocar por um pouco de vida celestial. Julgava-se morto, mas não uma morte humana. Quando passava só nas ruas de Cracóvia, as folhas das árvores faziam “rash Rash” à medida da estrada. Era verdade, esta era a música mais importante da sua vida. O vendedor de rosas acabou por lhe dizer que qualquer forma de arte não valia muito, que o melhor a fazer seria proceder a um intercâmbio em medidas de tempo. Pôs as mãos ao bolso e descobriu que também ainda tinha o suficiente para apanhar o elétrico até casa – mas depois lembrou-se que “casa” era o mundo inteiro num pequeno sopro. “Melhor que nada”, disse-lhe o homem. Foi aí que decidiu que ofereceria cerca de 20 anos em troca da flor. “Esse é o tempo necessário para que te dediques firmemente a esta flor e que possas fazer crescer um jardim inteiro”. “Where are you from?”, perguntou o turco. “I’m from the future”, disse ela enquanto empurrava a porta da casa-de-banho num movimentado bar de Kazimierz. Por instantes quis acreditar na sua punch-line, pagar-lhe um copo, descobrir que trazia um aviso sério a qualquer pessoa que se encontrasse naquele lugar. Uma mulher do futuro só pode trazer más notícias. O vendedor de rosas voltou a passar por ele e voltou a perguntar-lhe se queria comprar uma flor. Num súbito movimento tirou a moeda de cinco Zlotys e pagou por uma rosa. A mulher do futuro ainda estava na casa-de-banho. Pousou a rosa no chão, junto à porta e foi buscar mais uma cerveja. Olhou para a flor e de imediato soube que não seria imortal e que talvez 20 anos da sua vida valessem muito mais do que isso. Que tudo o que é perecível talvez não valha assim tanto quanto isso. Chegará o Inverno e depois dele, uma primavera com o tamanho de um coração partido. E no Verão tentará chegar ao cume de uma qualquer montanha na Europa Central – quando for novamente Outono apenas lhe restará a memória do Vístula quando ainda era um rio. Depois, apenas se sentirá só ao lado da sua flor e a promessa de um jardim tardará a chegar. Sentou-se ao balcão, mas não queria ser reconhecido por ninguém. Talvez a rapariga nem notasse no presente deixado. Não existia nenhuma consequência por expressar a sua súbita paixão. Talvez pudesse acabar a sua cerveja e voltar calmamente para casa, como se nada fosse – e aquela seria apenas uma pequena visão de um momento de extrema felicidade. Dizem que para encontrar o amor, não se pode imaginar tanto, não se pode viver na bolha de uma ideia pessoal de romance. Mas tudo o que ele queria era continuar a alimentar essa espécie de monstro, que lentamente sugava todo o mundo real para dentro de uma órbita de sorrisos e olhos desconhecidos. Mulheres-satélite. Ela encostou-se contra o seu corpo. A cama era demasiado pequena para dois corpos embrulhados como pachorrentos. Dormir tão próximo de alguém era um quotidiano que lhe parecia distante. Abraçou-a a meio de um sonho turbulento. Ao que parece aquela era uma casa para onde alguém tinha convidado fantasmas. É exatamente como os vivos, se estás só numa cidade distante e alguém te convida para uma cerveja, simplesmente vais – pois a única coisa que conheces são as consequências da solidão. Os fantasmas possuíam uma aparência escabrosa, com o corpo a decompor-se lentamente. É possível estar 20 anos numa tumba e manter a cor dos cabelos, as unhas impecáveis e os ossos rijos como a juventude. Mas a pele, os nervos e os pensamentos são totalmente decompostos. A cerveja pousada no balcão parecia uma pequena ebulição. Olhou à sua volta e estranhos conversavam em pequenos grupos. Podiam-se ver dois ou três casais. Por momentos pensou que talvez conseguisse experimentar o conforto de ter alguém. A rapariga do futuro apareceria finalmente, carregando a rosa nas mãos, sorrindo como se fosse algo incrível. Poderia falar com ela sobre tudo aquilo que está para vir: os beijos, os abraços, a casa, os bebés – talvez do futuro do planeta, uma nave extraterrestre a aterrar em solo terráqueo, uma inundação de proporções bíblicas que afundaria o mais gigante dos arranha-céus – ou apenas da morte. A inevitabilidade do fim que o futuro promete. A meio do seu pesadelo ele encostava-se à sua perna. O primeiro raio de sol despontava com um osso nítido. Um pequeno pedido para uma pequena morte logo pela manhã. Ainda estariam os dois cansados de toda a cronologia de eventos a que se predispuseram. Tinham apenas passado 12 horas desde o primeiro sorriso e ainda faltaria esse tempo (menos) vinte anos de companhia.
Não existia qualquer tipo de acordo ou contrato, apenas uma maneira sagrada de fazer as contas à precaridade de uma manhã. Pelo menos não existiam promessas para a eternidade, quantas vezes a eternidade acaba no dia seguinte? Era preciso acautelar toda a possibilidade do imaginário, que retira a seriedade ao tempo; acautelar que a própria essência animal desfizesse o leito em que eram apenas humanos. O barman continuava a tirar cervejas enquanto o turco imaginava. O tempo interior é tempo na medida dos Deuses. Todos nós conseguimos ser criadores do mais belo dos mundos. Era simplesmente isso: A cerveja, as vozes indistinguíveis, os pensamentos, a boca amarga e a sede de humanidade. Não precisava sequer de fechar os olhos para ser transportado para esse lugar de idílicos sonhos. Apenas a noite basta para sermos um raio de sol dentro da própria cabeça.
Todas as possibilidades acerca do amor, parecem-se sempre com os estranhos num bar perdido numa qualquer cidade ocidental. A sua boca era como um íman velho. A pele parecia-se cada vez mais com a sua própria pele. Os braços e pernas eram como um pequeno polvo, em águas quentes. Estariam predispostos a encontrar um pedaço de si próprios que costumava dar lugar ao vazio. O tempo não é nada quando é possível encontrar uma natureza parecida, um curso errante de águas que transbordam na ponta do sexo: uma língua de cobra que envenena todas as possibilidades de voltar ao lugar-originário. Enquanto pudessem aguentar os primeiros raios de sol, todas as palavras poderiam ser a mais pura verdade – pois a verdade só importa a uma loucura objetiva.
Não voltou a ver a mulher do futuro, muito provavelmente já se teria ido embora do bar. Ele próprio precisava de mijar e caminhar de volta a casa. Entrou dentro da casa-de-banho, mijou, sacudiu, lavou as mãos. Quando abriu a porta, estava uma moeda de cinco zlotys no chão.
HAPPINESS IS A BUTTERFLY
Costumava voltar ao Intendente
para encontrar safiras
em pingentes de valor incalculável;
exibia orgulhosa a tua beleza
e tu chamavas de amor a essa vontade
de nunca mais regressar;
da última vez lia poemas de madrugada,
sabia que a rua era uma casa
e que serias capaz de vender
essas joias –
“isto costumava ser um mau bairro”
é o começo de um poema
ainda mais distante;
dançar e adormecer antes
de todas as manhãs:
regressar num dia de neve
guardar gestos, reconstruir Lisboa,
mas muito longe de Lisboa
o suficiente
para que nunca mais
possa empenhar o teu olhar
em troca de um súbito instante.
VERÃO DO AMOR
Olhar para cada um como se fossemos parte da mesma semente. Uma espécie de grande útero onde se concebeu uma espécie clemente; vorazes de almas que são como estrelas cadentes. Vê- los inventar uma nova unidade dimensional, amor ao expoente de flores sob a mesa: um jarro de essência dármica. Desta vez engracei de tal modo com o universo que julgo não regressar a casa – onde estiver serei comunhão de terra e sorrisos junto ao Vístula. E se um dia puder, espero poder recordar qualquer uma destas noites e saber que fui excessivamente jovem. Que pude beber como se as madrugadas fossem uma invenção de anjos, respirando o hálito fresco das primeiras aves Abril.
Abro uma porta que me devolve a um tempo onde nunca vivi, e há quem ignore os aviso, “é possível que nunca chegue Charles e que ninguém seja produto da escuridão”. Volto a mim, recupero a coragem do próprio oxigénio, digo a mim mesma que também a felicidade é matéria da poesia. E aprendo que o amor não é uma labareda, mas sim uma incandescência que ilumina por breves momentos. E que todos se acendem à vez para que me ensinem algo sobre a luminosidade. Elas põem flores sobre os cabelos, um miúdo parece-se com o George Harrison e outros conseguem decolar pensamentos na forma de terríveis gargalhadas. E tudo o que escrevi até ao dia de hoje é uma Babel na direção do paraíso – o começo do sangue até à ponta de uma mulher que só agora o sabe ser.
LOUISE GLUCK
Devíamos ter parado no tempo:
o cavalo de Gluck ouve o mar,
também costumava prender o cabelo
com a certeza de que horizonte seria infinito:
o cavalo de Gluck ouve o mar,
também costumava ser mansa
e o centro dos teus olhos eram azul-indefinido.

Lígia Reyes
On August 30, 1990, a fire broke out on the slopes of Serra da Estrela. The flames could be seen from the room where Lígia Reyes was born. It was under the sign of fire that she developed her aesthetic and poetic sensibility. Between the creation and destruction of her literary work is a short step. Some of the writings that were saved were published in literary magazines (A Sul de Nenhum Norte, Apócrifa – PLEC 8 in Turkish in Türkiye Dil ve Edebiyat Derneği, in the Ecofeminist zine O meu útero é uma bomba, in the independent magazine Tlön and in the magazine Pulsar). She published her first book of poetry, Amor Peixe e Outras Loucuras, by Editora Urutau in 2019. She has been invited to present her work at the International Young Writers Meeting in Turkey, Porto Book Fair, Óbidos Literary Festival 2019, Libraría Paz in Galicia, Associação Cultural Valsa and Associação Bota in Lisbon, among other inhospitable places. She has collaborated with the Therapeutic Theater Group in Lisbon. She is the organizer of the Immersive Poetry event “multiVERSES”, which takes place at PRISMA Estúdio in Lisbon. She works as a copywriter, content writer and translator. In 2022 she publishes the poetry of other fires, with Amantes Occasionais.
