Raquel Patriarca

DA IMPORTÂNCIA DOS CLÁSSICOS

Que importa o quebrar do fio

enlaçado a ouro no novelo inteligente

de Ariadne.                                                                                                                                

Ou o conselho sábio de Quíron

em constelação de rumo

ausente sempre de erro.

Que importa o lavor de Penélope

e o tear em metáfora de dever e honra

que lhe veio impor.

Ou a mudez desistida nascente

agora nas cordas da lira

encantada de Orfeu.

Que importa o instinto presciente

de Cassandra e a certeza pontiaguda

da tormenta por chegar.

Ou o translúcido papel em asas

feitas de sonho e de vento

como as de Ícaro.

(As mesmas que trago eu

Hoje

cobrindo as cicatrizes).

Ser sonho em papel translúcido e

goma arábica tangente ao sol

ou vislumbre de infinito à vista do mar.

Que importa a altura da queda.

Que importa se o sonho

é voar.

OS LUSÍADAS

Cumpro, por ti, Luís Vaz, uma encomendação que se

fez promessa (talvez por mim a cumpra) entre as

pausas de uma vida discretamente real. É árduo o

enigma e sinto – talvez o tenhas sentido no tempo

que foi o teu – um embaraço em expansão, um susto

daninho que me vai apoucando engenho e vontade,

mas a promessa, Luís Vaz, já se fez rasto de horizonte

e o cais de silêncio deixou de ser a minha casa.

O problema, Luís Vaz, vem de tu seres tu. Depois

de ti – da tua vida apaixonada e truculenta, do génio

criativo e da literatura heroica, da morte trágica,

da obsessão caseira e da glorificação universal,

das figuras de diorito em pose e dos programas

de liceu, dos exames finais e das pautas de vergonha –

depois de cinco centenários, Luís Vaz, cabe ao puro

atrevimento escrever em português e imaginar-me poeta.

Qualquer pessoa – que não seja, bem entendido,

alguma das muitas pessoas do Pessoa – a escrever

na língua que dizem ser a tua – a mesma que cheira

a mar e soa a inteiro mundo – obriga-se a um esforço

muscular cruel de imaginar tu, Luís Vaz, não existes. Que

não lês e não escutas, do Olimpo onde habitas, as palavras

que aqui se escrevem. Não apenas estas, mas por força

estas que escrevo por ti (talvez por mim as escreva).

Tu inteiro, Luís Vaz, homem, sim, e poeta, claro –

amante, boémio, soldado, prisioneiro, viajante,

náufrago, cortesão, vagabundo – viveste em tresdobro

tudo quanto nós – nós todos e todas as pessoas do

Pessoa – vamos substituindo por horizontes, ou sonhos,

ou versos que tu, Luís Vaz, do Olimpo onde habitas, lerás

com enfado condescendente, imune sempre à sombra

que entornas por te caber de direito apenas a luz.

Talvez não saibas, Luís Vaz, que o bravo povo sonhador

e desassossegado sublimado no tempo que foi o teu,

segue agora caminho ao reverso das musas, desistido

das ondas e das estrelas, desistido de arriscar e de falhar,

desistido de tudo e até de si próprio, só não desistido

de mentir sobre a verdade. Também sobre a ossada

que repousa na solidão irónica de um tal manuelino

esquife com o teu nome a servir de lenda, digo, de legenda.

Em dias de solitude, ocorre-me pensar que em estância

alguma, Luís Vaz, escreverias hoje como no tempo que foi

o teu. E pergunto que palavras te seriam caras neste tempo

de agora, que cultiva ainda gente prestimosamente inclinada

à queima de livros, neste tempo quase perdido de gente

disposta a fazer-se ao mar, neste tempo que segue nomeando

quotidianamente os poetas como perturbações nevrálgicas

da normalidade, sofridas – hélas – como dores crónicas.

Queixo-me, Luís Vaz, bem sei, e todo este pranto é por

ti (talvez por mim pranteie). Perdoa-me o desacato e a

franqueza – que é fraqueza igualmente – mas a tua exasperante

falta de mácula – repara, Luís Vaz, que bastaria um só verso

mal pensado, um dente cariado, uma peúga rota pelo calcanhar –

essa falta de mácula faz de nós aprendizes numa arte que dizem ser

tão tua como esta língua que vou cantando – por roubo indecente

somente – desde que me lembro de respirar, digo, de escrever.

A vingança é vil e fraca consolação, bem sei, e perante ti,

Luís Vaz, me confesso criatura incapaz de segredo. Confesso

que por pretexto apenas te dedico a minha promessa (talvez a mim

a dedique). Trago a vida por escandir e sonho-me inteiramente

poeta, livre da sombra em evocação, por amor das palavras tão só,

por amor ao enigma e ao sentido, por amor à ideia perfeita de tudo

quanto pode a poesia. Pelo menos agora, neste tempo que é o meu,

digo em íntegra verdade que fui eu, poeta, quem escreveu os lusíadas.

A VOZ

Com Ana Luísa Amaral

Há uma voz em falta na escuta

das coisas simples. Encantadoras.

Uma voz em canto sonante de ave

cantante, que soa devagarinho

com efeito de relâmpago e de trovão.

Trova de sereia em búzio de mar

profundo, ou dança de tritão em fúria

náufraga, inteiramente livre. Música

corpórea de musa que tanto inspira

quanto abraça. Poema longo que perdura,

saudade que nunca passa. Falta-me essa

voz de ternura intensa, essa voz imensa

que faz do mundo jardim.

Escreve algo sobre a poeta, pede a mensagem e a mensagem desconhece, claro, a verdadeira envergadura do tanto que me pede. Ou a angústia em que vivo.

Tenho toda a caligrafia inocente, talvez perdida pelas costuras de um caderno em perpétuo estaleiro. Lá dentro, a fotografia de um beijo, aprende a esperar.

Espreito as páginas com a timidez que se guarda só à arte de observar as ideias e, de longe a longe, se o dia é oportuno ao milagre, encontro uma palavra que traz, mal-escondido, um pequeno rebento. Luminoso e significante no desafio da morte. Do esquecimento.

O miolo da arte, percebi agora,

não obedece ao vazio nem à vontade

material dos utensílios –

não se faz de cálamo, colher, cigarro, tesoura, telescópio, leme, janela

ou baloiço, nem de tijela partida, barco de velas altas ou reflexo de luar –

é verso, somente, que pousa e se demora

em mim. Em nós. Encanto consciente na

forma inteira de uma voz. É dançar

com as palavras como a árvore entrega

as folhas desiguais ao vento. É herança

que me abriga como alma alada largada

ao relento.

Por estes dias, em viagem numa estrada ausente de qualquer poesia, a voz – em gravação fiel – e um poema – tão querido – preencheram todos os espaços habitáveis à minha volta. No cruzamento seguinte, enganei-me no caminho e dei comigo, desimportada e deambulante, entre campos largos e muros pequenos.

Os muros, pensei, deviam ser todos pequenos. Teriam a existência entregue apenas à função de sabermos o bem que sabe trepar para cima deles e saltar para o outro lado. O bem que sabe esfolar os joelhos, ter cicatrizes para provar que já fomos grandes.

Falta-me essa voz que vislumbra todos

os versos que trago por escrever.

Mas trago-os, ainda assim. Quero

dizer: estou mais só e, todavia, creio

na beleza do rumo em horizonte aberto.

Agrada-me a certeza que habita apenas

no caminho incerto. Os braços ao redor

da árvore, o sorriso já a meio da subida,

as asas de pena bicolor em modo de alumbramento.

O olhar em fuga e a voz por dentro do silêncio.

No desavesso do pensamento –

LISTA (INÚTIL) DE TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS PELAS QUAIS SERÁS PERDOADA

Serás perdoada

quase sempre

pela maçada de teres nascido

mulher. E por reivindicares coisas

absurdas

também

quase sempre.

Concluirão que até tu mulher

terás o direito a um capricho

de vez em quando.

Deixarão soar com bonomia

tudo quanto digas inteiramente

incólume dirão está bem e

esperarão por ti de regresso ao

silêncio insípido da normalidade

no dia seguinte.

Perdoar-te-ão com esforço

de tolerância o idealismo a

inocência a excentricidade

artística a teimosia de pensar.

Quase sempre.

E também o mau gosto

na escolha do vestido

do filme impossível de compreender

do poema demasiado.

Serás perdoada pela solidão

pela angústia pelo abandono

que farás de ti própria.

Também pelo som das investidas

do teu corpo contra as grades.

Perdoar-te-ão quase tudo

exceto a ecdise de ti própria

e a insolência de seres tu.

HERANÇA

Um rosário de madeira puída.

Seis chávenas almoçadeiras

com cinco pratos apenas.

Um chapéu de feltro bom

com alguma consciência.

Um conjunto de agulhas de tricô

números dois, três e cinco

(as últimas com gancho).

Um botão de punho em prata antiga

sem par.

Uma lata de botões sortidos

(nenhum par do anterior).

Um livro manuscrito de receitas.

Um pouco de juízo.

Um sentimento de orfandade

talvez como ser amputada na alma

talvez como ser o relento na rua.

Sete colheres de sopa grandes

tão gastas que não podem ser levadas à boca.

Memórias de inteireza

tão contentes que seriam

capazes de salvar o mundo.

Uma coberta de lã

muito pequena para cobrir uma cama

talvez um regaço

talvez um desassossego.

Um anel de ouro com promessas cumpridas.

Uma escova de toucador com espelho.

Uma travessa de cabelos brancos

com carinho.

Uma caixa para abrigo

de madeira escura

com arabesco de madrepérola

onde tudo cabe em arrumo

tudo

excepto um abraço.

DEFINIÇÃO DE “JANELA TIPO VARANDA” EM DICIONÁRIO ILUSTRADO DE CRIAÇÕES ESSENCIAIS (PARA LER E RECOLHER AO INTERIOR SEM RODAR O TRINCO)

Janelas abertas

para varandas abertas

para espaços outros

Espécie substantiva indefinível

a janela tipo varanda

faz as vezes de uma subtil porta

que importa no ser lente

de observar o que a partir dela se vê

e também o que se não vê

e se imagina silenciosamente

em imagem distante da cor do granito

do ferro caldeado ou da roupa em estendal

Separadora ocasional das tempestades

e demais tumultos menos naturais na origem

a janela tipo varanda compõe –

quase sempre –

uma pose em lugar de luz

em sorriso às criaturas aladas

em ponto de fugas prometidas

Uma janela tipo varanda

é uma pergunta que se estende

a caminhos de respiração desigual

de quieto maravilhamento

É uma carta por escrever

em guarda por um pensamento

Num mundo sem janelas abertas

para varandas abertas

para espaços outros –

ausente do elemento comunicante

entre o aqui e o sonho –

qualquer olhar se apouca

encolhido cobarde

Num mundo sem janelas abertas

não existem acenos a quem passa

nem arcobotantes de verticalidade impossível

nem caravelas na distância em valsa de adamastor

nem donzelas em escuta de trovas de amor

nem cosmonautas a dizer o planeta –

como poetas –

caminhantes debruçados em

escotilhas longínquas

que são janelas abertas

para varandas abertas

para Espaços outros

                               pequena, azul clara e tão tocantemente só

Um mundo sem janelas abertas

não é sequer um mundo em modos

antes uma cova mal arejada

funda disforme turva

descrita em palavras rugosas

sem acústica e sem sentido

Um mundo sem janelas abertas

para varandas abertas

para espaços outros

não é um mundo

é uma infelicidade

uma heresia

um castigo de mito antigo

ou de conto de amedrontar

Tudo no mundo revolve

ao redor de uma janela ou de outra

voltada a esta varanda ou a outra

numa infinitude de janelas

em eco geométrico perpétuo

de varandas em descoberto

de olhares em desconcerto

É indiferente o tamanho

físico do objecto

é indiferente o lugar

concreto onde se acomoda

contanto que esteja aberta –

a janela –

para uma varanda aberta

para espaços outros

Mede-se em importância

pela espessura do momento

em que uma alma a ela se abeira

pela profundidade do olhar

pela modéstia do apontamento

em imagem muito lenta

pelo inclinar do silêncio

com que a luz da tarde

a toca e cumprimenta

____________________

A definição “pequena, azul clara e tão tocantemente só” foi proferida pelo cosmonauta Alexei Leonov quando, em 1965, se tornou o primeiro homem a caminhar no espaço.

Raquel Patriarca (Benguela, 1974). Librarian, historian, storyteller, and writer, she has a PhD from the Faculty of Letters of the University of Porto, with a thesis on the history of children’s books in Portugal. She mediates reading for various audiences and teaches future librarians and archivists, teachers and post-retirement students in subjects such as book promotion and reading mediation, creative writing, local history, and the history of books and libraries. If she’s not doing the above, she’s probably writing poetry, writing love letters on commission or traveling. She is the author of around a dozen books dedicated to children and has published two books of poetry, Cada gesto essencial, and Ástato, an element from the Periodic Table in the ElemeNtário collection.