João Pedro Azul

CLARAMENTE A NOITE.

Inflamável instante onde sou todas as estrelas

a cair para dentro de si e é essa a beleza possível

e absoluta a que aspira toda a ruína, passada ou futura,

O fracasso das palavras — escorregadias bordas do vazio,

onde as dores se quebram nas articulações;

As espinhosas cavernas da linguagem a espelhar o mistério

— nenhum ofício, arte nenhuma;

Todo o caos navegando à bolina pelas artérias e pelas perdas patrimoniais, até aos confins do acaso;

:assim crescem os deuses de tamanhos e hierarquias várias,

sob a minha língua — lago de cristal para patinagem artística.

Luzidia lucidez imberbe, a fingir-se domada

pelos princípios — moralidade cómica —

quando tudo é finado.

Delírio insone, adocicado pela memória do fruto

antes da árvore e do peso das vozes.

Ainda se ouvem os aplausos.

Há sempre um que teima em resistir.

A alegria a embalar o trauma, a ferida

sorri

em poço.

Claramente, no fundo.

A razão servida como entrada ou mero

divertimento bobo.

Os vasos alinhados à janela, cantam o espanto.

Os animais em volta, compõem o pranto.

Fragmentos de crianças em redor — a magia

e o terror bailando. Ecos da montanha.

Os deuses foram à praia — a casa está sozinha —

fazem castelos às claras. As mães partiram de mão dada

às estrelas. A ilha e a nuvem são a ilusão uma da outra.

As filhas prometem-se à esperança — o primeiro esgar

da ruína.

Algumas aprendem a trepar à árvore e eu sinto inveja.

Tão inútil quanto a medicina ou a arquitectura.

A verdadeira arte é o fingimento.

Planto uma lágrima no coração da terra.

E rio, até me afogar,

Claramente, continuo

Há máquinas lá fora a esmagar o tempo dentro da minha

cabeça

e vozes que caem sobre ela, rezas inúteis que aclaram

a idolatria dos necessitados, viciosos da ascensão.

A terra basta-me.

A queda é permanente

e morna.

Desejo e prazer confundem-se em violência tolerada,

lambendo-me a carne em chagas — fogo prematuro

de um fim possível

que se afunda, em golpe rápido e certeiro, no tecido

mole das expectativas.

Se soubesse gritar, gritava.

Se pudesse gritar, deixava-me dormir, certo do assombro.

E corria, pelo corredor da noite afora, a mostrar a língua embriagada aos amedrontados do vazio e do absoluto.

E ria, muito. Sem parar. Até a dor ser insuportável.

E, assim, me extinguir

sob a tragédia da manhã.

Ainda aqui estou.

Fracasso sobre fracasso.

Ruína de todas as fantasias.

Estendo a minha mão em direcção a ti,

atravesso a montanha em forma de pensamento,

procuro-te

e nunca estou.


© José Cruzio

João Pedro Azul. Vila do Conde (1972); Creator and editor of the magazine Flanzine and the publishing house Flan de Tal; Published, in 2020, the poetry book “Um Cavalo Sentado à Porta”; in 2015, together with the illustrator João Concha, the “Livro do Amo” (National Plan of Reading); and, in 2021, “Um Palerma Entre Num Bar e Não Vê o Elefante”, with illustrator Ricardo Abreu. He is also a founding member of Cabe Cave – Associação Cultural, with which he promotes aMOSTr – Mostra de Edições Independentes, in Vila do Conde.