ALGO-RITMO
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tão magro agora o verão
nestes quase-dias digitais
e eu a pensar que dentro do teu vestido vive
a arcaica aliteração do quase desusado
calor cutâneo
e eu a sentir dentro dos olhos
o movimento e o peso quente do sol
mas também a fria contra-gravidade
das principais imagens
a lembrar-me tanto dos teus olhos
tu que me ensinaste – sem querer
como se aprende sempre –
o primeiro verbo intransitivo do amor
mas eu e as minhas mãos nós quisemos
sempre a viagem interminável
aquela que em tudo o que diz é como
o silêncio dá
uma volta completa a si mesma
a cada verso ou coisa dita –
e nenhuma equação ou lei dura podem anular o acaso
ou a dança cherokee que criou o mundo
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que outra intuição poderás jogar contra
as palavras senão o fortuito nada que lhes é
simétrico
a cada momento imagina
o verso é uma coisa que roda nas mãos
ou o que a cada – grama de – silêncio separa
a carne da eternidade
o corte breve mas infinito
que faz todo o verdadeiro poema ser
sempre a guerra mais perfeita –
ou ainda o canto sioux da criação das coisas
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a imagem mais secreta
a infância ou
uma ilha de ar dentro
da boca
o céu corrompido
a fotografia calculada mas sempre invisível
do paraíso
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agora mesmo o espírito algo-rítmico
do meu tempo – contra o dito espírito geómetra
do deus de jerusalém – a querer fazer tudo para sempre
de todas as maneiras
ninguém anda sobre a água a não ser
no deserto ou dentro de ecrãs de ecrãs
e tu a quereres ensinar às máquinas o silêncio
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agora o véu de silício que te divide
os olhos ao meio
e ainda nestes anos essa mão que fala
agora de tanta coisa não conhece
o começo ou o fim da jaula de vidro em que
se move já programada calibrada
como uma divindade de calendário
ao contrário
a verdadeira arca negra existe
por detrás dos olhos – como o amor –
a caixa que nem
o deus de jerusalém conhece
por completo
o lugar que a catapulta
por fim fere
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talvez que não haja já furor instantâneo
ou continuado êxtase que refaça
e repare agora a estreita divisão dos lugares
mas nada é nunca
tão veloz que possa expurgar o que existe
o mundo é hoje mais do que nunca
um espelho que encontra um
espelho como se fosse
a noite em pleno dia
ou o sol vertical dos ecrãs
esse sol que nunca tomba
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também eu uma noite
experimentei a eternidade dentro
dos olhos
e se aprendi algo foi que toda
a metáfora que remonta é uma verdade
que cai
e algo ou alguém tem sempre
de iniciar a queda
assim também o silêncio (como se fosse
a verdade) no papel
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no primeiro sílex talhado
havia já o algoritmo ou
o pixel quântico por vir – o mundo inteiro agora
a cada instante o corte pela metade –
entretanto veio a flor de lótus do indra
o tal multiforme que dorme o sonho do espaço
um em cada rosácea das galáxias
um em cada link– toda
a beleza (quase) impossível do mundo no tempo
de que tudo é uma dobra
já na primeira pedra talhada
onde havia a medida sempre exacta
do infinito
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um dia ou uma noite
não sabes ao certo
conheceste a armadilha mais
perfeita
e por momentos puseste de lado
a fúria que ignora o risco mais intacto
o mais puro modo de sentir
tudo o que é
indecifrável – assim
seja sempre o amor
//
porque cada nome é ainda
neste tempo de permuta quase
infinita
de números e circuitos permeados
pela crença mais infida no ouro
cada palavra é a cada instante
o êxtase de que se despede
o salto ou computo súbito em que a veia abdica
do prazer do sangue

Luís Felício
[Tavira, 1982]
Poet.
Winner of the Cidade de Almada Prize (2011) and the Edmundo Bettencourt, Cidade do Funchal Prize (2011). With a degree in Philosophy from the Faculty of Letters of the University of Lisbon, he was co-editor and director of the literary magazine Cràse. He has also published texts under the pseudonym Ruy Narval in the journal Sin_ismo: projecto imaginário e heterotópico, from the Faculty of Letters of Porto, and in DN Jovem (since 2002).
With several literary distinctions, he won the Jovens Criadores Prize, organized by the Aveiro City Council, in 2007 and 2008, and was selected for the national collection Young Writers, by Clube Português de Artes e Ideias in 2008, 2009 and 2010.
Active Bibliography:
– Assim também um corpo (poetry), 2009, Edições Livro do Dia
– O som e a casa (poetry), 2010, Edições Artefacto
– A sombra dos lugares (poetry), 2012, Arcadia Editores
– O cânone contínuo (poetry), 2013, Edições Glaciar
– A noite e a porta (poetry), 2021, Editora Exclamação
