Luís Felício: Algo-ritmo

ALGO-RITMO

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tão magro agora o verão

nestes quase-dias digitais

e eu a pensar que dentro do teu vestido vive

a arcaica aliteração do quase desusado

calor cutâneo

e eu a sentir dentro dos olhos

o movimento e o peso quente do sol

mas também a fria contra-gravidade

das principais imagens

a lembrar-me tanto dos teus olhos

tu que me ensinaste – sem querer

como se aprende sempre –

o primeiro verbo intransitivo do amor

mas eu e as minhas mãos nós quisemos

sempre a viagem interminável

aquela que em tudo o que diz é como

o silêncio dá

uma volta completa a si mesma

a cada verso ou coisa dita –

e nenhuma equação ou lei dura podem anular o acaso

ou a dança cherokee que criou o mundo

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que outra intuição poderás jogar contra

as palavras senão o fortuito nada que lhes é

simétrico

a cada momento imagina

o verso é uma coisa que roda nas mãos

ou o que a cada – grama de – silêncio separa

a carne da eternidade

o corte breve mas infinito

que faz todo o verdadeiro poema ser

sempre a guerra mais perfeita –

ou ainda o canto sioux da criação das coisas

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a imagem mais secreta

a infância ou

uma ilha de ar dentro

da boca

o céu corrompido

a fotografia calculada mas sempre invisível

do paraíso

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agora mesmo o espírito algo-rítmico

do meu tempo – contra o dito espírito geómetra

do deus de jerusalém – a querer fazer tudo para sempre

de todas as maneiras

ninguém anda sobre a água a não ser

no deserto ou dentro de ecrãs de ecrãs  

e tu a quereres ensinar às máquinas o silêncio

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agora o véu de silício que te divide

os olhos ao meio

e ainda nestes anos essa mão que fala

agora de tanta coisa não conhece

o começo ou o fim da jaula de vidro em que

se move já programada calibrada

como uma divindade de calendário

ao contrário

a verdadeira arca negra existe

por detrás dos olhos – como o amor –

a caixa que nem

o deus de jerusalém conhece

por completo

o lugar que a catapulta

por fim fere

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talvez que não haja já furor instantâneo

ou continuado êxtase que refaça

e repare agora a estreita divisão dos lugares

mas nada é nunca

tão veloz que possa expurgar o que existe

o mundo é hoje mais do que nunca

um espelho que encontra um

espelho como se fosse

a noite em pleno dia

ou o sol vertical dos ecrãs

esse sol que nunca tomba

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também eu uma noite

experimentei a eternidade dentro

dos olhos

e se aprendi algo foi que toda

a metáfora que remonta é uma verdade

que cai

e algo ou alguém tem sempre

de iniciar a queda

assim também o silêncio (como se fosse

a verdade)          no papel

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no primeiro sílex talhado 

havia já o algoritmo ou

o pixel quântico por vir – o mundo inteiro agora

a cada instante o corte pela metade –

entretanto veio a flor de lótus do indra

o tal multiforme que dorme o sonho do espaço

um em cada rosácea das galáxias

um em cada link– toda

a beleza (quase) impossível do mundo no tempo

de que tudo é uma dobra

já na primeira pedra talhada

onde havia a medida sempre exacta

do infinito

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um dia ou uma noite

não sabes ao certo

conheceste a armadilha mais

perfeita

e por momentos puseste de lado

a fúria que ignora o risco mais intacto

o mais puro modo de sentir

tudo o que é

indecifrável – assim

seja sempre o amor

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porque cada nome é ainda

neste tempo de permuta quase

infinita

de números e circuitos permeados

pela crença mais infida no ouro

cada palavra é a cada instante

o êxtase de que se despede

o salto ou computo súbito em que a veia abdica

do prazer do sangue

Luís Felício

[Tavira, 1982]

Poet.

Winner of the Cidade de Almada Prize (2011) and the Edmundo Bettencourt, Cidade do Funchal Prize (2011). With a degree in Philosophy from the Faculty of Letters of the University of Lisbon, he was co-editor and director of the literary magazine Cràse. He has also published texts under the pseudonym Ruy Narval in the journal Sin_ismo: projecto imaginário e heterotópico, from the Faculty of Letters of Porto, and in DN Jovem (since 2002).

With several literary distinctions, he won the  Jovens Criadores Prize, organized by the Aveiro City Council, in 2007 and 2008, and was selected for the national collection Young Writers, by Clube Português de Artes e Ideias in 2008, 2009 and 2010.

Active Bibliography:

– Assim também um corpo (poetry), 2009, Edições Livro do Dia

– O som e a casa (poetry), 2010, Edições Artefacto

– A sombra dos lugares  (poetry), 2012, Arcadia Editores

– O cânone contínuo (poetry), 2013, Edições Glaciar

– A noite e a porta  (poetry), 2021, Editora Exclamação