I
uma lança enorme
Talvez um dia eu seja
fala revestida a fogo
facto, penetrando a eternidade.
A meu lado um leão e uma cobra
em força sedestre.
No patamar do
escuro articularei teu nome:
um Deus revestido de murta e de
ar sacrílego prostrado ante mim
balouçando na quietude suplicante
dos degraus que se opõem à mansidão
do cosmos.
Mais tarde, num arder purificante
chamarei por minha mãe, e lhe direi:
Teu filho e teu amante escurece na
negrura da luz e reza diante do forno
três ave-marias, que em nada se assemelham
aos teus cânticos de virgem macerada
e deposta na pedra da lareira
onde infringiste a lei, e, acabaste,
por pedir socorro a quem contigo
se cruzava.
Então forrada de anjos
e já em ascensão recordarás do velho
besugo o cheiro da carne por entre o fogo.
Respira, meu amor, enquanto adorno a cabeça
com folhas de louro de um cheiro intenso de
modo a produzirem o exorto de teu peito
onde um coração bate, tão lentamente,
que o sangue escorre de teus lábios,
como se teu corpo, tivesse sido atravessado
por uma lança enorme.
II.
Morrer sempre também cansa
Rastejar a penumbra
como quem jaz roído
pela côdea da memória
entorpecilhos os passos
se chamam de fora.
Pesado vagar em roço
pelo asfalto das brancas
rendições da submissão à dureza
onde estaca o cavalo
absorto na ranhura,
um destino
variando o bote em bot
o embotado duro
que dura, perdura.
O espelho do minguante quarto
homologa as escaras,
as escaravelhas de KafKa
neste Fahrenheit 451, só a gravilha ouve
como não se respira
JGF, Morrer sempre também cansa!
III
À Maria Teresa Horta
Um pavio nos olhos de mini-saia, no acoito,
maresia aspergindo o inspirar
junto ao sal, eurídice sem orpheu
Na fala e escrita do corpo, o rasgo dos eclipses
das luas e das faluas, lupus in fabula
mons veneris pelo corredouro dos audientes,
livração do êxtase acopulado na sede
resgata-te da febre que enlouquece os corpos de propósitos,
alimenta-te da carne indiscernível
das hormonas que brotam enfrentando o estrondo.
Foi.
O quedante holograma é prensa de abadessa,
uma virgem póstuma acaba de nascer.
*

Aurelino Costa
Born in Argivai, Póvoa de Varzim / 1956.
Poet and reciter, graduated in Law from the Faculty of Law of the University of Coimbra.
Works: Poesia Solar, ed. Orpheu, Lisbon, 1992; Na Raiz do Tempo, ed. Tema, Literary Department of Soc. Guilherme Cossoul, Lisbon, 2000; Pitões das Júnias, ed. Fluviais/Lisbon & Galeria Arcana, Pontevedra, 2002; Amónio, ed. Do Buraco, Literary Department of Soc. Guilherme Cossoul, Lisbon, 2003, 2nd edition (bilingual, Spanish-Portuguese) translated by Sílvia Zaias, ed. Amalaia, León, 2006; Na Terra de Genoveva, ed. Do Buraco, Literary Department of Soc. Guilherme Cossoul, Lisbon, 2005.
Anthologies: A Poesia é Tudo, ed. Francisco Guedes, 2004; Na Liberdade – 30 anos – 25 Abril, Garça Editores, Lda., Peso da Régua, 2004; Vento – Sombra de Vozes / Viento – Sombra de Voces, Iberian Poetry Anthology, 2004; Son de Poesia, ed. Fluviais, Lisbon & Livraria Couceiro, Galicia, 2005; Os Dias da Criação, ed. Leader/Adrat, Trás-os-Montes, 2006; Canto de Mar / poetry about Nazaré, ed. Library of CM Nazaré, 2005; Cântico em Honra de Miguel Torga, Coimbra Editora, 2007.
Discography: Na Voz do Regresso, commemorative edition for the Centenary of the Birth of José Régio, ed. Municipality of Póvoa de Varzim, with Maestro António Victorino D’Almeida, 2001; Confluência (CD – Audio), ed. Asa, 2002; Torga na Portagem, commemorative edition for the centenary of the poet’s birth, Coimbra, with António Victorino D’Almeida.
Collaboration/narration in Miguel Cervantes & las Músicas del Quixote, with Hespérion XXI, under the direction of Jordi Savall, 2006; collaboration/reciter in the recital Música e Poesia, with António Saiote (clarinet) and Iwona Saiote (flute); participation/reciter in the films Olhar Coimbra and Olhar o Mar, produced by Didacthèque de Bayonne, with the support of the European Community (language program). 1993/1995.
Cinema: actor in Netto e o Domador de Cavalos, by Tabajara Ruas, Rio Grande do Sul, Brazil.
Television: collaboration in the series Pianíssimo (2006) and Sons do Tempo (2007), RTP1, by António Victorino D’Almeida.
