Do livro, Poemas do dilúvio
O mar redescobre o marulho bem compassado das marés.
Os pássaros ensaiam os primeiros acordes do dia.
A sabedoria popular vê no canto ainda noctívago das aves
o prenúncio de um dia quente.
O homem calvo, como em todas as manhãs, de frio ou de calor
corre pontualmente atrasado para apanhar o primeiro comboio.
E nós no limbo da noite com o dia deixamo-nos vencer
despidos pelo sono dos justos.
Sono sem cama. Sono acordado.
Sono com dezenas de quilómetros por atravessar
e escassas horas para dormir.
Reencontrar-te-ei entre a morfina do sono
e o labirinto de memórias das últimas semanas
enquanto o despertador à espreita, pronto a tocar
me permitir esta visita guiada ao teu quarto.
No sonho, atrevo-me ser Narciso e encontro em ti
aquilo que espelho és em mim:
parte visível da minha verdade
parte visível da minha mentira
Os iguais também se atraem
***
desnudar
o rosto moderno
da solidão
expor a dor
o vazio
descobrir
nas palavras
o recanto
o conforto
o bálsamo
de dias perfeitos
Do livro, Páginas despidas
verdade submersa
trabalhar incessantemente a mentira da palavra
a logicidade do discurso
viola a abstração da boca que o pronuncia
a língua (precoce) permanece hipnotizada no seu túmulo
pelo encantador de serpentes
enquanto a verdade é só saliva no fundo do cesto
***
sobre o sentido
busco o sentido
e não está na palavra
abro os
pronomes, adjetivos, advérbios, verbos, substantivos
flores indesejáveis
contrapontos do silêncio significativo
sobre o papel
e não encontro
como o surdo sente a palavra só
o silêncio da palavra só
só palavra?
estática, morta sobre o papel
não sob o papel
viverá também ele
a ditadura da metáfora e do sentido?
***
há lodo no belo
o lixo
por baixo do belo
o lado
do lixo das coisas
o lado o lodo
do belo
Do livro, O relógio avariado de Deus
bala perdida
que
desce
o morro
sobrevoa
o asfalto
e se aloja na cabeça
de um anjo
que
que
agachou
para apanhar
uma das penas
***
Maria
a ficha ainda não caiu
quando chegar a casa
abrir o quarto e deparar
com a mochila por arrumar
dar-me-ei conta
que ela foi baleada
no lado direito do tórax
quando descia as escadas
da estação dos Anjos
a sua última viagem de metro
foi a primeira
***
o relógio avariado de deus
pelo sorriso que não deu
(e se o fez nem sentiu que sorria)
pelo beijo desejado todos os dias
pelo amor da menina de óculos fundo-de-garrafa do final da sala de aula
que nunca virá (e quando vier, outro será o amado)
pelo silêncio guardado no calabouço
pela mãe dividida com o irmão
pelo não
pelo verbo implodido na garganta
pelo pai sonhado e por isso inexistente
(como todos os pais sonhados e por isso inexistentes)
pelo filho que enviou sinais
e os tradutores não conheciam a sua língua
pelo parapeito
(o último pódio)
pela vista panorâmica
(do nada)
pelo Junho
(sem santos populares
nas alturas)
pela terça-feira
(de céu limpo)
pela janela
(do oitavo andar)
pelo voo
(sem para-quedas)
pela consciência
(ante o asfalto)
pelo impacto
(antes do zero
da nossa impotência)
morreste-nos
Do livro, Insulares
verso algum
com linha costura
e não há quem dele
traduza
a faca o corte o amor
no seu lume
o inferno o fogo o norte
que em si sucumbe
***
é esta a ausência? olhar o bilhete confirmar o destino e seguir
viagem? a paisagem como um filme mudo e quem passe apanhe
os remendos de outros que já têm os seus retalhos? a ausência
de repetirmo-nos relicários, ladainhas, terços, contas e dívidas
por saldar? o copo pela metade do corpo feito armário meio
cheio meio vazio? é esta a ausência de sermos deuses do finito e
mesmo contra a vontade não saber a resposta? o paraíso à frente
dos olhos mas sem as férias de nós próprios? é esta a ausência
a cultura, a fogueira que se acende no umbigo do artista e
sequer palavra sã que se veja? a erosão que é por dentro a montanha
que é por fora? a procissão, a lamúria de velas gastas, a palavra
destituída de sua localização primeira? o lamento nas veias abertas
missa que arrasta o santo em nome próprio e nunca se extingue?
a ausência de contar pessoas como carneiros e constatar que a noite
nunca se foi embora? a consciência de si, a presciência do outro
que mora em nós em morada incerta? é esta a ausência da casa
emprestada, da casa alugada, do endereço de muitos
e eu sem lugar em mim.
***
aberta a ferida
inaugurado o desnorte
(afluentes do arbítrio)
estamos
que rios sou hoje?
Do livro, Os cavalos adoram maçãs
algo me desarma
o sorriso sem filtros
algo me enerva
o sorriso sem falhas
algo me assassina
o sorriso esquelético da fome
***
algures no Leste
o vento sopra nuvens de tropas
que estacionam maus presságios
uma noite demente acorda pesadelos antigos
desmente a paz possível
noite dentro da noite de ódios
noite de posses ancestrais
o vento apaga a chama
réstia do diálogo que finda
a noite é sem misericórdia
noite de medos
***
os cavalos adoram maçãs
há um cavalo morto
estendido sobre a linha do comboio
há um cavalo branco morto
na linha férrea que liga a praia
das maçãs a Sintra
há um cavalo branco morto
com olhos vítreos a olhar
o além que termina no muro
do outro lado da rua
há um cavalo branco vivo
na infância de cada um
há tanto silêncio nesta tarde de sol
há um cavalo deitado inerte no meio da linha
há um senhor que chora a morte do seu cavalo
há um senhor que não se aguenta de pé de tão ébrio
há turistas dentro do comboio que liga
a praia das maçãs a Sintra
há telemóveis que guardam o cavalo branco
para que o mundo veja o seu destino
há tanto silêncio nesta tarde de sol
há uma criança que afaga a cabeça do cavalo branco morto na linha
há uma criança que afoga lágrimas no branco pelo macio do cavalo
há uma criança que guarda o cavalo no seu coração
há um cavalo branco morto
estendido sobre a linha férrea que liga
a praia das maçãs a Sintra
os cavalos adoram maçãs
Do livro, Insanos
paris, je t’aime
Cena 01 – homem desenha numa enorme mesa de madeira.
Cena 02 – desenha um esquisso, quase naïf, de Paris e a sua torre.
Cena 03 – ele procura algo que ainda não está no desenho.
Cena 04 – o homem, agora à janela, sobrevoa a paisagem.
Cena 05 – sonha acordado um sonho ilustrado.
Cena 06 – o homem é agora o homem ilustrado pela cidade luz.
Cena 07 – o homem ilustrado procura algo, a torre movimenta-se com ele.
Cena 08 – dois amantes ilustrados beijam-se à beira do Sena.
Cena 09 – o homem ilustrado entra na ilustração do autocarro,
onde passageiros, ilustres no desenho, sonham com mundos reais.
Cena 10 – uma bela mulher ilustrada entra no autocarro,
e beija o apaixonado e ilustrado homem, que acorda do seu sonho.
Cena 11 – noutro ponto da cidade, mulher desenha numa enorme mesa de madeira,
Paris com a torre Eiffel ao fundo.
Cena 12 – ela procura algo que ainda não está no desenho.
***
democracias
há um silêncio abafado
que antecede à chuva
uma quietude de mormaços
que se consegue cheirar
e que pelo olfato
pela pressão sob a pele
pelo limbo das paisagens nostálgicas
pressentimos guerras iminentes
***
vidas negras importam
um nome se perde
aos 8 minutos e 46 segundos
debaixo do joelho do mal
aos 8 minutos e 47 segundos
respiramos a sua revolta
expiramos a nossa impotência
este nome tem cor
este nome tem luz
este nome tem som
e o seu eco agora, reverbera
no pulmão de mundos
***
a partilha
com carinho para o meu irmão, Alexandre
vale o lanho na testa
disco voador numa tampa de lata
vale o pingo do plástico derretido
sobre o pé esquerdo sofrido
valem as brigas,
e as chineladas, da mãe, a apartá-las
valem os trezentos e sessenta e um dias
que nos separam
vale uma bola e um carrinho de plástico
cortados ao meio
vale o preço da infância
que o meu irmão dividiu comigo
Do livro, ainda inédito, O avesso da casa
tudo em volta é só saudade
de amanhãs que tardam
o ar da sua graça pesa sobre as pálpebras
de nostalgias
a janela, nova tela
exibe um filme que nunca sonhamos ver
***
a casa dilata-se ou encolhe-se
conforme a tempestade de expectativas
pensar é um contrassenso
amar é um contrassenso
discutir é um contrassenso e
não basta fechar as persianas
para que a máquina silencie
***
a casa ameaçada pelo invisível
não se aguenta nas pernas
o lugar vago no sofá
o lugar da televisão
o lugar de muitas idades
o lugar vago na cama
do hospital
hoje o invisível venceu
***
o silêncio corta
a cidade de domingos
e nunca mais é segunda-feira

Ozias Filho, Writer, Photographer, and Book Editor, was born in Rio de Janeiro. He holds a degree in Journalism from Faculdade Hélio Alonso and in Photography from PUC. He also has a postgraduate degree in Editing and New Digital Media from the Universidade Católica Portuguesa.
In 2001, he released the book Poemas do Dilúvio (Flood Poems) through Alma Azul Publishing. He conceived and led several projects at the Casa da América Latina (Lisbon) over a decade, including Uma Hora Com os Poetas (An Hour With the Poets), Noites em Pasárgada (Nights in Pasárgada), and Neruda com Amor (Neruda with Love).
From 1999 to 2011, he was responsible for Editora Vozes in Portugal. In 2013, he published Ar de Arestas (Edges of Air) in collaboration with the poet Iacyr Anderson Freitas. The photographs from this book were exhibited at the Murilo Mendes Museum of Modern Art in Juiz de Fora, Brazil.
In 2017, he participated in the Semana da Poesia Ibero-Americana (Ibero-American Poetry Week) in Lisbon (as well as in the event’s anthology of writers) and in the VI Bienal de Culturas Lusófonas (Lusophone Cultures Biennial), where one of his images from the Shadowless series was featured.
His most recent exhibitions include QUASINVISÍVEL (ALMOST INVISIBLE), part of the Passado Presente – Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura (Past Present – Lisbon Ibero-American Capital of Culture), and, in 2019, at A Pequena Galeria in Lisbon, the series Por estes dias o mar tem dentes (These Days, the Sea Has Teeth).
As a poet, he has published the books O Relógio Avariado de Deus (God’s Broken Clock) with Edições Pasárgada and Texto Território, and Insulares with Livros de Ontem and Editora Jaguatirica, in both Portugal and Brazil. In 2022, he published his first children’s book, Confinados (Confined), illustrated by Nuno Azevedo.
In 2023, he released the poetry collection Os Cavalos Adoram Maçãs (Horses Love Apples) through Urutau Publishing, in both Brazil and Portugal, along with Insanos (Insane) through Edições Húmus. In 2025, he is set to publish another poetry book, O Avesso da Casa (The Reverse of the House) with Urutau Publishing.
He has participated in several literary festivals, including: FOLIO, the International Literary Festival of Óbidos, Ronda Leiria Poetry, Ibero-American Poetry Meeting (Casa da América Latina, Lisbon), Lusophone Writers Meeting (Odivelas), Festival Silêncio (Lisbon), Douro Literary Festival, Ovar Literary Festival, and the Ibero-American Poetry Meetings at the José Saramago Foundation (Lisbon).
He writes a monthly column titled Quem eu vejo quando leio (Who I See When I Read) for Jornal Rascunho, in which he photographs and writes about writers from the Portuguese-speaking literary world.
For more information about the author: Ozias Filho
