Raquel Serejo Martins

Deixei o meu coração no forno,

é só aqueceres e tens jantar.

O que sobrar dá ao gato.

Eu sempre gostei do gato.

in Aves de incêndio (2016)

We will replace lost lovers

Não vou perder tempo a procurar amores perdidos,

perdidos na adolescência, na praia,

na floresta, noutros olhos, noutras bocas, noutros corações,

vou ao funeral, levarei flores, as preferidas, três dias de luto,

vou guardar só as boas memórias, as memórias boas,

vou deixar doer até a dor desaparecer,

morrer à míngua como sem água uma planta num vaso,

vou visitar velhos amantes,

jóias sem par, de pôr e tirar,

brincos, botões de punho, anéis de pedras perdidas,

camas onde tenho sempre lugar,

corpos que me protegem em concha,

bocas que beijam os meus defeitos,

vou olhar com olhos em cio todos os habitantes da cidade,

e no olhar mais brilhante encontrar um novo amante,

a quem vou, uma vez mais, chamar amor

e amar, poro a poro, sem pudor e sem decoro,

como um dia amei os meus amores perdidos.

in Subúrbios de Veneza (2017)

Quero a ignorância

Quero a ignorância

do instante antes da felicidade

a ignorância do instante

antes da catástrofe,

a surdez das paredes às orações,

a surdez dos pés nos pedestais,

quero ser como os outros animais,

um pouco de prazer um pouco de dor

um pouco de amor um pouco de solidão

um pouco de sonho um pouco de rotina

um pouco de música um pouco de silêncio

um pouco de água um pouco de sede

um pouco de pão um pouco de fome

um pouco de pão um pouco de bolor

um pouco de pão um pouco de sombra,

ser um pouco de sombra, a tua sombra,

não quero ser íntima de mandarins,

quero ser íntima de mandarinas,

não dos pinheiros mas das resinas,

não das janelas mas das cortinas,

não das ruas mas das esquinas,

não das esposas mas da concubinas,

querer, quero coroar-te os dias de alegria,

e sim, eu sei que deixo muito a desejar,

no fundo, era expectável, nasci

num incêndio de Inverno

sem asas nem guelras.

in Silêncio sálico (2020)

Como

Como se estivesses dentro de mim,

como se eu estivesse dentro de ti,

passei a noite a ouvir a tua canção favorita

com a concentração e a dedicação de um químico,

passei a noite em risco de explosão,

o coração como um avião contra as torres gémeas,

tu de chuteiras a jogar à bola com o meu coração,

e as paredes da sala inteiras,

a casa em pé,

eu no chão da sala de olhos nas gaivotas do tecto,

havia gaivotas no tecto,

como quando um barco pesqueiro regressa à costa,

os teus pés lembram gaivotas,

voam nos meus pensamentos,

não cabem nos meus pensamentos,

não cabem na minha boca,

queria comer-te da cabeça aos pés,

dizem que o amor é sobretudo química,

não sei,

sei que há amor sem amor,

sei que há dor sem dor,

sei que a imaginação é imprudente,

é insolente,

transforma gaivotas em abutres,

e estou no chão da sala, estou no deserto,

duvido se ainda estou viva,

sei que sou ridícula,

o saber não ocupa lugar,

mas os teus pés ocupam os meus pensamentos,

a minha imaginação passou a noite a dançar a tua canção,

é uma bailarina velha, decrépita,

quer os teus pés numa bandeja como Salomé

quis a cabeça de São João Baptista.

In Valsa a vau (2021)

O poeta que levo para a cama

O poeta que levo para a cama

tanto usa a palavra amor como a palavra foder

como usa o meu corpo para me dar

e lhe dar prazer.

O prazer é um sorriso de felino farto,

é uma ilha grega,

é uma villa napoletana,

é um mergulho no mar,

é um copo de água,

é uma suite de Bach,

é uma lareira acesa,

é uma bem casada prostituta francesa,

é um corpo sem condolências.

O prazer é um sorriso discreto e monaliso,

que todos vêem e ninguém percebe,

mas do qual suspeitam saber o motivo.

E depois do amor jantamos,

beija-se por desejo

come-se por necessidade,

partilhamos lagostas, fumos, licores,

ou um pedaço de queijo, uma garrafa de vinho,

ainda no paraíso, uma maçã dividida

quarto a quarto pelos dois,

à mesa trocamos minudências,

curiosidades e pequenas maledicências,

como na cama trocámos pés, mãos, bocas,

sexos, sorrisos e adolescências,

e falamos de questões deveras importantes

como ser ou não ser.

Inédito

My half-used heart

My half-used heart is full

of people and clouds, a bunch of cats

and wind songs and books and dusty windows,

my singers, writers, painters, my poets, my movies,

a family of penguins, a pirate, a parrot and a pink flamingo

and shoes and hats and summer dresses,

a Tom Waits’ blues, a lot of avenues, everyday papers and the sad news,

blackbirds singing and plum pies and laughs

and sorrows and shadows and lost combats

and dead flowers and stars and bats,

a first kiss, a cowboy and a spy,

an empty swimming pool, an empty old house,

and summer nights and winter mornings,

a birdhouse, a lighthouse,

and tears and fears and a one eyed teddy bear,

a bad and a good girl and a playground,

a bridge, a bride, a groom,

uncountable bags of tea, bottles of wine and packs of cigarettes,

and little monsters in little boxes and all the times I ask you why,

a bicycle with its postman, a fisherman’s wife,

a pair of spare keys,

a potato field, an orchard,

lots of lovely words from the beloved ones,

some hellos a few goodbyes, your blue-brown eyes

and my broken hopes like broken bones.

In Os invencíveis (2018)

Raquel Serejo Martins

Reluctant economist, smoker with both pleasure and regret, vegetarian, not a skilled swimmer, used to dance flamenco, now studies the cello, lives in Lisbon, has two cats.

She has published two novels: A Solidão dos Inconstantes (2009) and Pretérito Perfeito (2013); six poetry books: Aves de Incêndio (2016), Subúrbios de Veneza (2017), Os Invencíveis (2018), Plantas de Interior (2019), Silêncio Sálico (2020), and Valsa a Vau (2021); three plays: Preferia estar em Filadélfia (2019), A Iguana Viúva (2021), winner of the Miguel Rovisco Prize (3rd edition), Requiem por Isabel (2023), winner of the Miguel Rovisco Prize (5th edition) and semifinalist for the Oceanos Prize 2024; a travel chronicle book: Yoko Meshi (2023); and a short story collection: Peixes de Cardume (2024).

She has translated: L’utilité d’une clé à molette / A utilidade de uma chave inglesa (2024), poetry, published in France by Cahiers de l’Approche, bilingual edition, translated by Sónia da Silva.