Renato Filipe Cardoso

MINIFÚNDIO

tenho a cabeça rachada

de sementes

de tamanho turbilhão

rogo descanso

só quero deitar-me na terra

talvez mudar o mundo

por contágio

A ANGÚSTIA NO MOMENTO DO ENVELOPE

pessoa que és uma flor na trincheira

em tempo de guerras informáticas

desvia o olhar da minha colecção de borboletas

treinadas para sobreviver a terramotos

e repara:

este é o meu primeiro incêndio

este é o meu último sangue

qual dos dois hei-de mandar-te por correio azul?

ÁGUAS PASSADAS

(POEMA DE UM PAÍS QUE PODE MUITO BEM SER MULHER)

com vista para o futuro condicional

regado a meio-seco

monocasta compadrada

de colheita selecta

terroir pipi

e sonata lacrimante

em esplanada sem licença

para m’atar

a gente gourmet

de bouquet empinado

o país levou-me a jantar gaivotas

à luz das velas

e eu

perdoei-lhe o mar

CANÇÃO DE EMBALAR PARA NÁUFRAGOS

nós que aprendemos a abrir os braços em cruz

nós ordeiramente em procissão

nós em ordeiro calvário

nós quem, ele? ele está no meio de nós

nós volta para a tua terra

nós só tempestade

nós quem nos salva da intempérie

nós arvorados em prolífera frota pesqueira

nós que nunca saímos do porão

nós que não sabemos o nome próprio de um peixe sequer

nós que ancorámos o riso no ecrã que é a única luz nossa senhora no escuro

nós no escuro nosso tão nosso

nós dentro do porão

nós que temos fôlego de vampiros

nós fera tu

nós que desenvolvemos tecnologias para encriptar o passado

nós que criámos técnicas para repetir o futuro

nós sem fibra

nós que, segundo ciosos manuais haliêuticos da fome, usamos

isco obscuro para pescar sonhos recém-nascidos

nós, quando são mais tenros e saborosos

nós que arpoamos crianças com voracidade madura

nós a devorar crianças de plástico

nós a devorar crianças de poliéster

nós a devorar crianças de alumínio

nós a devorar crianças de marfim

nós a devorar crianças de petróleo

nós a devorar crianças de lítio

nós a devorar nós

nós que devoramos em canónica metalurgia os minúsculos ossos

nós a dizer amém à barbárie para nos benzermos impolutos

nós a esquartejarmos crianças para envelhecermos sem mácula

nós a ilegalizarmos crianças para termos propriedade sem culpa

nós treinados para chorar só quando a morte se torna demasiado visível

nós passados

nós mas tudo há-de passar

nós num piscar de olhos

nós milagre & pôr-do-sol em braille

nós cegos

nós desertos de ver

nós desertos de ver pela trela

nós miragens

nós que não flutuamos

nós que não vamos ao fundo

nós que nunca vamos a parte alguma

nós que enjoamos mesmo não indo a parte alguma

nós sem lanterna, sem bote, sem mapa

nós sem retorno

nós que nem a própria vida salvamos

nós que incendiamos o mar para apagar os vestígios

nós fogo-de-artifício

nós artifício

nós só artifício

nós só cinza

nós sós

nós o vazio segue dentro de momentos

nós interrupção sem desculpa

nós cujos fins justificam os meios

nós desprovidos de meios

nós meios-homens

nós deus nos livre mulheres

nós soltos entre três paredes

nós presos a monte

nós cobardes com mil veias a clamar justiça

nós faca zero coragem light

nós 50% da gordura

nós moscados

nós abelhados

nós vespados

nós sem asas

nós sem azo

nós que nos dói um abcesso na nuvem

nós plenipotenciários guarda-chuvas

nós que não chovemos a estranhos

nós que ao pingar no ermo da noite nos sentimos torrentes

nós secos, secos, secos

nós cavalo selvagem em pó

a quem nunca aconteceu juntar-se água

nós que não temos um só pingo de água doce no coração

nós descalçando-nos no momento de entrar no próprio coração

nós sorrateiros para não acordar o grão de sal que dorme no fundo

nós, no fundo

nós ao fundo

nós nunca dispostos

nós indispostos

nós sede infinda

nós gaseificados acreditando caminhar sobre as águas

nós sobre as águas gaseificadas

nós turbilhões dentro, nós alojados na ignorância

nós cinco estrelas no tripa divisor

nós incapazes de olhar para dentro

nós só beleza interior

nós interior desertificado

nós cantando e rindo

nós nunca mais é sábado

nós vamos marcar isso na semana que vem

nós dia de são nunca

nós demora muito

nós tem de ser rápido que não tenho tempo

nós nem o pai morre nem a gente almoça

nós wash&go

nós je suis charlie mas não pisem os meus calos sagrados

nós a dar música

nós não sei viver sem música

nós incapazes de escutar

nós só notas

nós desclassificados

nós perdidos no espaço

nós a irmos à merda com gps

nós acima acima gajeiro

nós escalando à gávea para olhar para baixo

subindo em fila indiana ao píncaro torto do caralho

nós de toda a parte, em toda a parte, por toda a parte

nós em parte incerta

nós só parte

nós que já lá fomos

nós que nunca estivemos

nós que havemos de contar a estória e descrever o percurso

aos que hão-de ir

ir-se

CANDIDATURA AO MINISTÉRIO DA SOLIDÃO

se eu mandasse a vida era só música triste

lições de piano na copa das árvores

que o mar das lágrimas não viesse cobrir

caramelos para os últimos a cortar

a meta dos pulsos

cada chicote convertido em torniquete

em cordas com habilitação literária de violoncelo

se eu mandasse todos muitíssimo nos amaríamos

surdamente em desvãos

estarrecidos por rum e cartas anónimas

embevecidos de coração às escuras

o câmbio do sol caindo a pique em miríades de teclas nocturnas

e se adormecêssemos seria ainda por acender

por puro vício de descoordenação motora

os dedos passeando-se, como projectos de açúcar,

por extensas claves de pele

o céu feito à mão

onde formigueiros dançantes

quando eu mandar nenhuma outra indústria singrará

que não a da tristeza

um instante insano, não mais, poderemos gastar

a sorrir

uma só vez por dia

assim que a loucura se liberte pelas sirenes

comandando-nos, à saída da fábrica,

a que tropecemos no berço, abandonado à porta,

da própria solidão

CINEMATROIKA

(o óscar vai sempre para os mesmos)

Este país não é para velhos:

O Titanic afundou.

O Cinema Paraíso fechou.

Os sacanas sem lei governam-

-se, deixando-nos a contas com o estado de sítio

e a insustentável despesa do ser.

Os piratas das Caraíbas recebem rendimento mínimo

— são as regras da casa!

Mas um dia a casa veio abaixo

e tudo o vento levou.

Agora, o amor é um lugar estranho

e o fabuloso destino de Amélia

depende da garganta funda

aberta até de madrugada,

ou de ser amante do tenente francês

ou do paciente inglês,

ou de arranjar emprego driving miss Merkl,

a velha raposa.

E pela janela indiscreta

o vizinho sabe que o pecado mora ao lado

porque antes do amanhecer

ela já aviou três homens e um bebé,

que amamenta e deixa sozinho em casa

quando sai para o sexo e a cidade,

a cidade dos malditos.

As escolhas de Sofia

já não são entre delicatessen e

amor e dedinhos dos pés

— contenta-se com um festim nu

a sonhar com lendas de paixão.

E enquanto mulheres à beira de um ataque de nervos

se enterram em negros hábitos

de amor à queima-roupa,

as crianças praticam a má educação

antes de serem juventude irrequieta,

e aquele homem que tinha uma história simples

tornou-se um touro enraivecido

nas horas vagas faz biscates como taxi driver

por um punhado de euros.

Resta-nos o sol enganador,

já que sob o céu de baunilha

o mundo é um gelado de limão amargo

e na televisão a feira das vaidades

mais parece uma guerra das estrelas

em que o império contra-ataca

e todas as estrelas se passaram para o lado negro da força,

porque voando sobre um ninho de cuscos

mais vale ser a bela e o paparazzo

que a bela e o monstro.

Protegido pelo guarda-costas

e por cães danados

nascidos para matar,

o grande ditador

(uma mente brilhante)

assegura que melhor é impossível

e pergunta-nos — onde está o patriota?

Pois bem, é ele hoje um homem no limite.

E enquanto lhe restava sangue e honra

cansado de suplicar por favor não me morda o pescoço

teve de emigrar para a quimera do ouro,

juntou-se à grande evasão

provavelmente até ao fim do mundo,

qual um turista acidental

no lugar do morto

com terror na autoestrada

e mortinho por chegar a casa.

Conhecesse ele o segredo dos punhais voadores

e seria sua a vingança do guerreiro,

qual exterminador implacável

do político imperdoável.

Adeus Lenine,

agora o grande chefe é que manda

rodeado por ministros belos sonhadores,

os coristas,

os vigaristas,

na verdade 12 macacos

a brincar ao jantar de idiotas

no empório dos sentados,

pretensa liga de cavalheiros extraordinários

a quem falta sensibilidade e bom-senso

para construir um verdadeiro império dos sentidos.

No fundo os incríveis falsários

são tudo bons rapazes,

só que feios, porcos e maus

exercem a manha submersa

já se confundem o bom, o mau e o vilão.

E onde pára a polícia?

A cor do dinheiro

é a mesmíssima do homem invisível.

Para uns e os outros

sobreviver é uma missão impossível

e os 007 cêntimos na carteira

parecem gritar só se come uma vez, pá,

aproveita os 21 gramas de bolor.

come o porquinho, babe,

e até os gato preto gato branco

acabarão de cor púrpura no panelão

a fazer as vezes de pato com laranja.

Laranja mecânica, pois claro,

que o nome da rosa é tempero sensaborão.

Querido diário,

viajamos de olhos bem fechados

num eléctrico chamado desejo

à espera ou de um luminoso anjo azul

ou do salvador

e tudo isto porque, Europa,

foste o sonho de uma noite de Verão,

mas afinal não és a ilha do tesouro

e sim a terra do nunca

onde de tanto bater o meu coração parou.

Apesar de tudo a vida é um milagre

e só se vive duas vezes,

pensa com os botões o náufrago

que em 1984

(o ano da profecia)

dança com lobos

e, salteador da arca perdida,

planeia um assalto ao arranha-céus

porque apocalipse now.

do princípio

escuta:

é do princípio que te escrevo.

ainda não cresci

mas escondi os chinelos

e descalça

a infância não irá longe

as coisas que toco

ao de leve

colam-se-me aos dedos

sussurram amor

ou criança

pela boca de incêndio

por enquanto

dou-me à fome

de outrem.

construo jogos de papel

e é do princípio que te escrevo

“PASTEURIZAÇÃO DOS CANONINHOS”

ninguém sabe ao certo onde encontrar as estrelas.
de quando em vez um de nós planta a cavalo
e vai
intoxicado de fracturas
andaimes e pagamentos por conta
comprar a garrafa que faz falta à festa
pagar com o branco dos dentes
e nunca mais alguém o vê
(são, quase sempre, os melhores de nós que se compadecem
com a sede dos outros)

é-nos confortável a alma assim qual
lata de sardinhas
acidez controlada, redor marítimo
comprovado pela plural sinfonia de anzóis.
o que vai tomar senhor doutor?
indeciso entre uísque ou um batido de certezas
mas conquanto haja gelo
tudo nos enterra o nome pela goela abaixo
quem nunca engoliu uma ou outra piça

um sapo ou aqueloutro animal que nos chama qualquer
atire a primeira pedra

ninguém sabe ao certo como fazer pontaria
aprendemos a engolir de olhos cerrados
a beber, por assim dizer, de lâminas

que se conformam amigáveis às mãos de semear

vazios colossais
e é assim que batemos palmas
enquanto os autojuízes nos recitam ossos
ao jeito de corredores abandonados
por mero amianto de estimação

ninguém sabe ao certo como subir ao telhado
por isso alguém entediado de horror inventou o sentimento-
-telescópio
lente pintada de negro
para não cegar

ninguém sabe ao certo como rir de tudo isto
ninguém sabe ao certo como rir
ninguém sabe ao certo como ir de tudo isto
por isso foi discutida e votada a lei
de decretar gigantes
mas chumbou com os votos da esquerda ambidestra
e da direita amputada;
e o mário, que andava há anos a treinar maratonas
a partir do fim, zangou-se com a política
da vil natalidade

ninguém sabe ao certo onde está o mário
todos querem atê-lo à mercê do próprio tamanho

e as palmas ecoam tão alto
que não se consegue ouvir sequer um coração

nas circundantes milhas, centilhas

ilhas musculadas de água ch

oca e só

ninguém sabe ao certo como ou quando procurar

dentro
e o medo do não-saber leva-nos a sair
sair apenas
sem agasalho para a inteligência
nem guarda-chuva para as grossas ácidas gotas
de incerteza
que pingam urgentes na alma

arrepiada como gatos

ninguém sabe ao certo que ser a alma
mas apalada como marinada de tomate, óleo animal
e um dia destes ainda
alguém nos enfia um dedo no cu
para dactilografar uma carta ao deserto
que foi visto pela última vez a vaguear na nossa própria
cabeça de linha branca,
e nós brindaremos com champanhe francês
até que a rolha nos atinja
a santidade
em cheio no epicentro da procissão

ninguém sabe ao certo onde fica o cortejo
ninguém sabe ao certo onde fica a cortiça
ninguém sabe ao certo onde fica o corteché
onde fica o corte celestial
— nem sequer os sacramentais livros de aventuras
como o peter pan-

démico
a alice violada no país das maravilhas
ou as bíblias

declinadas nos cuidados intensivos

ninguém sabe ao certo onde fica o córtex
e só por isso os carteiros deviam ser muito mais
bem pagos que os médicos

e terem um bisturi para nos abrir a porta

e terem um bisturi para nos escancarar a alma

sem destinatário visível

está tudo a arder outra vez, a sede aperta
mais gelo, por favor

e uma lição de fado para turistas cegos

ninguém sabe ao certo a falta que faz
um maravilhoso rato vivo
a contaminar

os interstícios do cérebro

ao imenso

mário david campos

COMO A TI MESMO

para amar o próximo

não tens de odiar

o anterior

o sentido da vida é

dobar o mar em torno dos pés

e ficar

à espera do próximo comboio

o demais é inteligência artificial

MAKE DISNEYLAND GREAT AGAIN

os heróis estão fora de moda

fora-da-lei

agora são os vilões quem vende mais

a sua cruz nos quadradinhos

com os poderes do superpateta

o novo donald é um rato

para compensar, há mais de oito mil milhões de patos

brevemente abriremos em marte

o poema é um espelho

para atravessar a nado

Renato Filipe Cardoso

Anadia, Aveiro, 1971.

Journalist in the field of alternative and independent music, commercial radio host, voice-over trainer, micro-publisher, cultural event promoter—mainly poetry-related—and poetry performer. As a poet, he has been featured in several national and international anthologies and literary magazines and has published 16 volumes of poetry, the first of which was a finalist for the Correntes d’Escritas Prize. He also released a bilingual anthology published in Spain and for Latin America. As a performer, he has a close connection with Pinguim Café (Porto) and the Quintas de Leitura at the Porto Municipal Theatre, while maintaining several active projects, particularly the satirical performance Missa MalDita, the love poetry show Partido Coração, and the Stand-up Poetry collective, which tours the country with humorous poetry performances. He has been a guest at various literary festivals and events, both in Portugal and abroad.