MINIFÚNDIO
tenho a cabeça rachada
de sementes
de tamanho turbilhão
rogo descanso
só quero deitar-me na terra
talvez mudar o mundo
por contágio
A ANGÚSTIA NO MOMENTO DO ENVELOPE
pessoa que és uma flor na trincheira
em tempo de guerras informáticas
desvia o olhar da minha colecção de borboletas
treinadas para sobreviver a terramotos
e repara:
este é o meu primeiro incêndio
este é o meu último sangue
qual dos dois hei-de mandar-te por correio azul?
ÁGUAS PASSADAS
(POEMA DE UM PAÍS QUE PODE MUITO BEM SER MULHER)
com vista para o futuro condicional
regado a meio-seco
monocasta compadrada
de colheita selecta
terroir pipi
e sonata lacrimante
em esplanada sem licença
para m’atar
a gente gourmet
de bouquet empinado
o país levou-me a jantar gaivotas
à luz das velas
e eu
perdoei-lhe o mar
CANÇÃO DE EMBALAR PARA NÁUFRAGOS
nós que aprendemos a abrir os braços em cruz
nós ordeiramente em procissão
nós em ordeiro calvário
nós quem, ele? ele está no meio de nós
nós volta para a tua terra
nós só tempestade
nós quem nos salva da intempérie
nós arvorados em prolífera frota pesqueira
nós que nunca saímos do porão
nós que não sabemos o nome próprio de um peixe sequer
nós que ancorámos o riso no ecrã que é a única luz nossa senhora no escuro
nós no escuro nosso tão nosso
nós dentro do porão
nós que temos fôlego de vampiros
nós fera tu
nós que desenvolvemos tecnologias para encriptar o passado
nós que criámos técnicas para repetir o futuro
nós sem fibra
nós que, segundo ciosos manuais haliêuticos da fome, usamos
isco obscuro para pescar sonhos recém-nascidos
nós, quando são mais tenros e saborosos
nós que arpoamos crianças com voracidade madura
nós a devorar crianças de plástico
nós a devorar crianças de poliéster
nós a devorar crianças de alumínio
nós a devorar crianças de marfim
nós a devorar crianças de petróleo
nós a devorar crianças de lítio
nós a devorar nós
nós que devoramos em canónica metalurgia os minúsculos ossos
nós a dizer amém à barbárie para nos benzermos impolutos
nós a esquartejarmos crianças para envelhecermos sem mácula
nós a ilegalizarmos crianças para termos propriedade sem culpa
nós treinados para chorar só quando a morte se torna demasiado visível
nós passados
nós mas tudo há-de passar
nós num piscar de olhos
nós milagre & pôr-do-sol em braille
nós cegos
nós desertos de ver
nós desertos de ver pela trela
nós miragens
nós que não flutuamos
nós que não vamos ao fundo
nós que nunca vamos a parte alguma
nós que enjoamos mesmo não indo a parte alguma
nós sem lanterna, sem bote, sem mapa
nós sem retorno
nós que nem a própria vida salvamos
nós que incendiamos o mar para apagar os vestígios
nós fogo-de-artifício
nós artifício
nós só artifício
nós só cinza
nós sós
nós o vazio segue dentro de momentos
nós interrupção sem desculpa
nós cujos fins justificam os meios
nós desprovidos de meios
nós meios-homens
nós deus nos livre mulheres
nós soltos entre três paredes
nós presos a monte
nós cobardes com mil veias a clamar justiça
nós faca zero coragem light
nós 50% da gordura
nós moscados
nós abelhados
nós vespados
nós sem asas
nós sem azo
nós que nos dói um abcesso na nuvem
nós plenipotenciários guarda-chuvas
nós que não chovemos a estranhos
nós que ao pingar no ermo da noite nos sentimos torrentes
nós secos, secos, secos
nós cavalo selvagem em pó
a quem nunca aconteceu juntar-se água
nós que não temos um só pingo de água doce no coração
nós descalçando-nos no momento de entrar no próprio coração
nós sorrateiros para não acordar o grão de sal que dorme no fundo
nós, no fundo
nós ao fundo
nós nunca dispostos
nós indispostos
nós sede infinda
nós gaseificados acreditando caminhar sobre as águas
nós sobre as águas gaseificadas
nós turbilhões dentro, nós alojados na ignorância
nós cinco estrelas no tripa divisor
nós incapazes de olhar para dentro
nós só beleza interior
nós interior desertificado
nós cantando e rindo
nós nunca mais é sábado
nós vamos marcar isso na semana que vem
nós dia de são nunca
nós demora muito
nós tem de ser rápido que não tenho tempo
nós nem o pai morre nem a gente almoça
nós wash&go
nós je suis charlie mas não pisem os meus calos sagrados
nós a dar música
nós não sei viver sem música
nós incapazes de escutar
nós só notas
nós desclassificados
nós perdidos no espaço
nós a irmos à merda com gps
nós acima acima gajeiro
nós escalando à gávea para olhar para baixo
subindo em fila indiana ao píncaro torto do caralho
nós de toda a parte, em toda a parte, por toda a parte
nós em parte incerta
nós só parte
nós que já lá fomos
nós que nunca estivemos
nós que havemos de contar a estória e descrever o percurso
aos que hão-de ir
ir-se
CANDIDATURA AO MINISTÉRIO DA SOLIDÃO
se eu mandasse a vida era só música triste
lições de piano na copa das árvores
que o mar das lágrimas não viesse cobrir
caramelos para os últimos a cortar
a meta dos pulsos
cada chicote convertido em torniquete
em cordas com habilitação literária de violoncelo
se eu mandasse todos muitíssimo nos amaríamos
surdamente em desvãos
estarrecidos por rum e cartas anónimas
embevecidos de coração às escuras
o câmbio do sol caindo a pique em miríades de teclas nocturnas
e se adormecêssemos seria ainda por acender
por puro vício de descoordenação motora
os dedos passeando-se, como projectos de açúcar,
por extensas claves de pele
o céu feito à mão
onde formigueiros dançantes
quando eu mandar nenhuma outra indústria singrará
que não a da tristeza
um instante insano, não mais, poderemos gastar
a sorrir
uma só vez por dia
assim que a loucura se liberte pelas sirenes
comandando-nos, à saída da fábrica,
a que tropecemos no berço, abandonado à porta,
da própria solidão
CINEMATROIKA
(o óscar vai sempre para os mesmos)
Este país não é para velhos:
O Titanic afundou.
O Cinema Paraíso fechou.
Os sacanas sem lei governam-
-se, deixando-nos a contas com o estado de sítio
e a insustentável despesa do ser.
Os piratas das Caraíbas recebem rendimento mínimo
— são as regras da casa!
Mas um dia a casa veio abaixo
e tudo o vento levou.
Agora, o amor é um lugar estranho
e o fabuloso destino de Amélia
depende da garganta funda
aberta até de madrugada,
ou de ser amante do tenente francês
ou do paciente inglês,
ou de arranjar emprego driving miss Merkl,
a velha raposa.
E pela janela indiscreta
o vizinho sabe que o pecado mora ao lado
porque antes do amanhecer
ela já aviou três homens e um bebé,
que amamenta e deixa sozinho em casa
quando sai para o sexo e a cidade,
a cidade dos malditos.
As escolhas de Sofia
já não são entre delicatessen e
amor e dedinhos dos pés
— contenta-se com um festim nu
a sonhar com lendas de paixão.
E enquanto mulheres à beira de um ataque de nervos
se enterram em negros hábitos
de amor à queima-roupa,
as crianças praticam a má educação
antes de serem juventude irrequieta,
e aquele homem que tinha uma história simples
tornou-se um touro enraivecido
nas horas vagas faz biscates como taxi driver
por um punhado de euros.
Resta-nos o sol enganador,
já que sob o céu de baunilha
o mundo é um gelado de limão amargo
e na televisão a feira das vaidades
mais parece uma guerra das estrelas
em que o império contra-ataca
e todas as estrelas se passaram para o lado negro da força,
porque voando sobre um ninho de cuscos
mais vale ser a bela e o paparazzo
que a bela e o monstro.
Protegido pelo guarda-costas
e por cães danados
nascidos para matar,
o grande ditador
(uma mente brilhante)
assegura que melhor é impossível
e pergunta-nos — onde está o patriota?
Pois bem, é ele hoje um homem no limite.
E enquanto lhe restava sangue e honra
cansado de suplicar por favor não me morda o pescoço
teve de emigrar para a quimera do ouro,
juntou-se à grande evasão
provavelmente até ao fim do mundo,
qual um turista acidental
no lugar do morto
com terror na autoestrada
e mortinho por chegar a casa.
Conhecesse ele o segredo dos punhais voadores
e seria sua a vingança do guerreiro,
qual exterminador implacável
do político imperdoável.
Adeus Lenine,
agora o grande chefe é que manda
rodeado por ministros belos sonhadores,
os coristas,
os vigaristas,
na verdade 12 macacos
a brincar ao jantar de idiotas
no empório dos sentados,
pretensa liga de cavalheiros extraordinários
a quem falta sensibilidade e bom-senso
para construir um verdadeiro império dos sentidos.
No fundo os incríveis falsários
são tudo bons rapazes,
só que feios, porcos e maus
exercem a manha submersa
já se confundem o bom, o mau e o vilão.
E onde pára a polícia?
A cor do dinheiro
é a mesmíssima do homem invisível.
Para uns e os outros
sobreviver é uma missão impossível
e os 007 cêntimos na carteira
parecem gritar só se come uma vez, pá,
aproveita os 21 gramas de bolor.
come o porquinho, babe,
e até os gato preto gato branco
acabarão de cor púrpura no panelão
a fazer as vezes de pato com laranja.
Laranja mecânica, pois claro,
que o nome da rosa é tempero sensaborão.
Querido diário,
viajamos de olhos bem fechados
num eléctrico chamado desejo
à espera ou de um luminoso anjo azul
ou do salvador
e tudo isto porque, Europa,
foste o sonho de uma noite de Verão,
mas afinal não és a ilha do tesouro
e sim a terra do nunca
onde de tanto bater o meu coração parou.
Apesar de tudo a vida é um milagre
e só se vive duas vezes,
pensa com os botões o náufrago
que em 1984
(o ano da profecia)
dança com lobos
e, salteador da arca perdida,
planeia um assalto ao arranha-céus
porque apocalipse now.
do princípio
escuta:
é do princípio que te escrevo.
ainda não cresci
mas escondi os chinelos
e descalça
a infância não irá longe
as coisas que toco
ao de leve
colam-se-me aos dedos
sussurram amor
ou criança
pela boca de incêndio
por enquanto
dou-me à fome
de outrem.
construo jogos de papel
e é do princípio que te escrevo
“PASTEURIZAÇÃO DOS CANONINHOS”
ninguém sabe ao certo onde encontrar as estrelas.
de quando em vez um de nós planta a cavalo
e vai
intoxicado de fracturas
andaimes e pagamentos por conta
comprar a garrafa que faz falta à festa
pagar com o branco dos dentes
e nunca mais alguém o vê
(são, quase sempre, os melhores de nós que se compadecem
com a sede dos outros)
é-nos confortável a alma assim qual
lata de sardinhas
acidez controlada, redor marítimo
comprovado pela plural sinfonia de anzóis.
o que vai tomar senhor doutor?
indeciso entre uísque ou um batido de certezas
mas conquanto haja gelo
tudo nos enterra o nome pela goela abaixo
quem nunca engoliu uma ou outra piça
um sapo ou aqueloutro animal que nos chama qualquer
atire a primeira pedra
ninguém sabe ao certo como fazer pontaria
aprendemos a engolir de olhos cerrados
a beber, por assim dizer, de lâminas
que se conformam amigáveis às mãos de semear
vazios colossais
e é assim que batemos palmas
enquanto os autojuízes nos recitam ossos
ao jeito de corredores abandonados
por mero amianto de estimação
ninguém sabe ao certo como subir ao telhado
por isso alguém entediado de horror inventou o sentimento-
-telescópio
lente pintada de negro
para não cegar
ninguém sabe ao certo como rir de tudo isto
ninguém sabe ao certo como rir
ninguém sabe ao certo como ir de tudo isto
por isso foi discutida e votada a lei
de decretar gigantes
mas chumbou com os votos da esquerda ambidestra
e da direita amputada;
e o mário, que andava há anos a treinar maratonas
a partir do fim, zangou-se com a política
da vil natalidade
ninguém sabe ao certo onde está o mário
todos querem atê-lo à mercê do próprio tamanho
e as palmas ecoam tão alto
que não se consegue ouvir sequer um coração
nas circundantes milhas, centilhas
ilhas musculadas de água ch
oca e só
ninguém sabe ao certo como ou quando procurar
dentro
e o medo do não-saber leva-nos a sair
sair apenas
sem agasalho para a inteligência
nem guarda-chuva para as grossas ácidas gotas
de incerteza
que pingam urgentes na alma
arrepiada como gatos
ninguém sabe ao certo que ser a alma
mas apalada como marinada de tomate, óleo animal
e um dia destes ainda
alguém nos enfia um dedo no cu
para dactilografar uma carta ao deserto
que foi visto pela última vez a vaguear na nossa própria
cabeça de linha branca,
e nós brindaremos com champanhe francês
até que a rolha nos atinja
a santidade
em cheio no epicentro da procissão
ninguém sabe ao certo onde fica o cortejo
ninguém sabe ao certo onde fica a cortiça
ninguém sabe ao certo onde fica o corteché
onde fica o corte celestial
— nem sequer os sacramentais livros de aventuras
como o peter pan-
démico
a alice violada no país das maravilhas
ou as bíblias
declinadas nos cuidados intensivos
ninguém sabe ao certo onde fica o córtex
e só por isso os carteiros deviam ser muito mais
bem pagos que os médicos
e terem um bisturi para nos abrir a porta
e terem um bisturi para nos escancarar a alma
sem destinatário visível
está tudo a arder outra vez, a sede aperta
mais gelo, por favor
e uma lição de fado para turistas cegos
ninguém sabe ao certo a falta que faz
um maravilhoso rato vivo
a contaminar
os interstícios do cérebro
ao imenso
mário david campos
COMO A TI MESMO
para amar o próximo
não tens de odiar
o anterior
o sentido da vida é
dobar o mar em torno dos pés
e ficar
à espera do próximo comboio
o demais é inteligência artificial
MAKE DISNEYLAND GREAT AGAIN
os heróis estão fora de moda
fora-da-lei
agora são os vilões quem vende mais
a sua cruz nos quadradinhos
com os poderes do superpateta
o novo donald é um rato
para compensar, há mais de oito mil milhões de patos
brevemente abriremos em marte
o poema é um espelho
para atravessar a nado

Renato Filipe Cardoso
Anadia, Aveiro, 1971.
Journalist in the field of alternative and independent music, commercial radio host, voice-over trainer, micro-publisher, cultural event promoter—mainly poetry-related—and poetry performer. As a poet, he has been featured in several national and international anthologies and literary magazines and has published 16 volumes of poetry, the first of which was a finalist for the Correntes d’Escritas Prize. He also released a bilingual anthology published in Spain and for Latin America. As a performer, he has a close connection with Pinguim Café (Porto) and the Quintas de Leitura at the Porto Municipal Theatre, while maintaining several active projects, particularly the satirical performance Missa MalDita, the love poetry show Partido Coração, and the Stand-up Poetry collective, which tours the country with humorous poetry performances. He has been a guest at various literary festivals and events, both in Portugal and abroad.
