CONFESSIONÁRIO
já não mais quero escrever poesia como certos anjos, é difícil esta vida de morrer assim pouco a pouco a noite toda, remendar a manhã com a restante saliva do sono neste país de devastação e sofrimento. quero também a brisa das praias transparentes, um céu que trocasse as nuvens por algodão e um mar também azul atropelando-me as quilhas do coração. beber café, decantar os livros? no more no more no more! quero no amor outros domínios: uma mulher que não seja só carne e esquecimento, um copo de vinho brando da mais casta videira das palavras. já não mais quero despertar assim com a alma toda pela boca.
De: Matéria Para Um Grito (2018)
CURTA-METRAGEM
apresento-vos a mão de quem tocou a escuridão do mundo
os seus dedos vivem colados ao seu improvável rosto
os seus vinte dedos demasiadamente numerosos
para quem tem uma só estrela por cada noite uma só morte
e a vida toda a refazer-se desta cíclica tempestade.
felizes são os que retornam aos seus lugares de origem
a minha viagem é um pensamento que não tem volta
estou tentando recriar o mundo à minha imagem e dissemelhança
com este mundo que nos foi dado e repartido como oferta
à custa dos braços de quem envolveu seu sangue ao lodo.
não vos direi com palavras o que se viu desse lado opaco da terra
custa acreditar no dia que reencontramos o nosso próprio esqueleto
esmagado pela trepidez do corpo e arruinado pelo ácido dos pesadelos
a água a luz e o pão das nossas dívidas não chegam a nada
diante desta triste e impermutável sabedoria.
aqui está a mão de quem transporta à vista algum segredo
com a clara compreensão de que tudo é finito
basta um telefonema do consultório médico para abrir a ferida
o amor como todo o álibi atraiçoa
ninguém diz não quando se desce à cova do abandono.
De: Criação do Fogo (2024)
PRIMEIRA NOTA
aos dias
darás o plástico
equilíbrio solar
e uma pedra
de silêncio
adornará o peito
raso das manhãs;
não deixes que te roubem
[também] este segredo,
ou que vértebra
alguma exponha
a mais ínfima
das palavras:
não há álcool
que estanque
tamanha ferida.
De: Matéria Para Um Grito (2018)
IV
aqui reina a palavra, o poema, o amanhecer de todos os fonemas sobre as casas, sobre a vida, sobre os cursos de água, sobre as padarias vigiando a fome, sobre o sol aludindo o fogo, a alquimia, sobre um rio correndo na mão em premonitória quiromancia. mas fala-se também do puro instante da aparição, da vida regendo os sonhos, a língua, do manejo do verbo, da caligráfica ave, do oráculo da fala ou da poética gramática da escrita. diz-se ainda de uma janela contemplativa, do alfabeto entregue em oferenda e do alumbro mágico de quem cria. diz-se dessa palavra temperada: o sol, esse imenso latifúndio de luz, vindima da esperança. diz-se da sua ramagem incendiária; a lavrada substância do fogo; favo do mel da claridade; o sol rasgando o hímen resoluto das manhãs. por isso:
por nada, por tudo
por um instante de luz
abro o cárcere de palavras, o mudo
silêncio onde me pus.
desato o poema, meu escudo
contra a escuridão que me seduz
mas a liberdade que aludo
nenhuma poesia traduz.
De: Para Uma Cartografia da Noite (2016)
PAI
o que me fascina na noite é como à certa hora a líquida substância do escuro se mistura ao tempo, ao barro, à toda a matéria visível e invisível. desconfio que é quando durmo e é nesse exacto momento que tu entras. chamo pelo teu nome como poderia chamar-te simplesmente por pai, esta mesmíssima palavra que não a pronuncio passa um quarto de século, mas tu chegas e as palavras brilham e com elas o nome dos filhos que persistem sob a vastidão da terra. sob essa pálida luz nos abraçamos, mesmo que eu saiba que durmo e que ao acordar o horizonte vergará sombrio como no resto dos dias; não nos constrange que tenhas aberto a pesada página do livro dos mortos (não tinhas culpa), pelo contrário, ensaiamos um riso porque já não sabemos onde buscar as lágrimas e admiramo-nos a carne intacta em meio a tanta podridão do mundo. astuto como sempre, não me advertes que sonho e sequer narras as antigas histórias de embalar, insistes em olhar as estrelas – que nos são familiares – e contamos a longa lista dos nomes daqueles que se naufragaram com os ventos de setembro, aqueles com que as armas apagaram o espanto no rosto e brindamos à nossa tribo e àqueles que antecederam os nossos passos sobre a terra, sobre os mares, sobre as praças, sobre as cidades inteiras. voltamos às mesmas bibliotecas onde aprendemos o idioma do amor, com as mesmas lâmpadas sob as quais morrerei e seguirão os teus netos com os improváveis manuscritos que só à poesia dirão respeito. o que me fascina na noite é quando desperto deste engano e constato que o teu rosto resiste ao esquecimento.
De: Animais do Ocaso (2021)
O ENIGMA DE BORGES
sou aquele que chegará de noite
ilibado da doméstica suspeição
dos animais do afeto e da doçura.
sou o que desarrumará a mobília
o que destapa os objetos ocultos na meditação.
sou quem conduzirá contigo o olhar
ao encontro da seiva da costela de adão
à bioluminescência da palavra
ao tinido das espadas de iansã
ao tímpano onde toque a secreta nota
e à água para a erva do teu sossego.
sou o flautista deste pastoreio
o que resguarda o rebanho da angústia
dos dias negros, da endemia
das vozes baixas, do murmúrio
do tropeço dos trapezistas
no circo privado da imaginação.
sou o filme mudo dos edifícios
o girassol entregue ao lume dos teus cabelos.
sou uma probabilidade geométrica
o enigma de borges, o argentino
o bilhete de última hora ao cinema
as portas de um teatro a abrir-se.
sou aquele que escalará de noite
a janela aberta do teu coração.
Inédito

Álvaro Fausto Taruma
Poet, writer, and one of the voices of the new Mozambican literature, Álvaro Fausto Taruma has been creating a body of work that treats language as a political, intimate, and poetic space. He was awarded the BCI Literature Prize for the book Matéria para um Grito (2018), was a finalist for the Oceanos Prize (2024), and in 2023, a translation of one of his poems received the Stephen Spender Prize in the United Kingdom. Since 2020, he has served on the jury of the International Golden Pen Award. He has published Para uma Cartografia da Noite (2016), Matéria Para Um Grito (2018), Animais do Ocaso (2021), Recolher Obrigatório do Coração (2022), and Criação do Fogo (2024), the latter of which inspired the play Não Deixa Arder Até Tarde o Fogo, adapted and produced by the author himself. In 2025, he released the book Máquina do Olhar.
