1.
não o conheço
mas sinto a falta dele
nunca falámos e ele fala comigo todos os dias
fala com as mãos é um malabarista dos gestos e os olhos sorriem
sorriem tanto que as palavras são apenas música
é um pastor amoroso
leva consigo uma multidão de pensamentos em concertado desacordo
e quando caminha leva os ventos pela mão e eles obedecem e tornam-se mansos
leva um sol no olhar transmuta as estrelas em berlindes e brinca com os girassóis
ele é uma criança a quem o sussurro dos campos obedece
transforma o cair da noite em amanhecer
pousa na mão a estrela da manhã e com uma fisga lança-a
ao céu
está sempre feliz mesmo quando está muito triste porque leva na alma
as vozes da natureza o segredo de estar em sintonia com todos os pirilampos
com todas as aves de canto, com os duendes,
as salamandras e os seres alados
e quando caminha canta:
“o amor é uma companhia
já não sei andar pelos caminhos
um pensamento visível faz-me andar mais depressa
e ver menos, e ao mesmo tempo gostar de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma cousa que está comigo
e eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.”
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 10-07-1930)
2.
não sei quem é ele
por vezes vem muito nítido e presente
olhando com os olhos de quem acabou de despertar
outras vezes vem por dentro da visão como uma paisagem
por vezes os meus olhos choram as suas lágrimas
sinto o peito chorando por dentro
as lágrimas são minhas
mas não sou eu que choro
é ele
outras vezes coloca a cabeça no meu colo e faz-me rir e brincar
umas vezes é uma criança outras um adolescente
quando me olha tem um sorriso muito doce e os olhos são berlindes que brilham
diz que é um pastor amoroso
diz que tem uma flauta que trouxe para tocar
e em silêncio não se cala murmurando pequenas frases de vento
traz nas mãos um movimento de gira sóis e gira luas
saem delas estrelas coloridas rebuçados encantamento
não sei quem é ele
mas promete-me voltar
P.S. Do que me disse e pouco entendo aqui transcrevo sua voz:
“Não sei o que fazer das minhas sensações.
Não sei o que fazer comigo sozinho.
Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo.”
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 23-07-1930)
3.
sorri
(é uma voz que não é minha)
o que fala não são só palavras
diz que não sabe falar porque apenas sente
e por sentir a voz se espalha pelos campos pelos grandes rios pelas planícies
pelas montanhas no silêncio do eco uma oração talvez porque se anuncia a hora
do angelus caindo o entardecer pai nosso de cada dia as mãos a desfiar as contas
em prece
diz que sente e ama a natureza
a amplidão de pequeninas luzes violeta alaranjadas que brincam no verde intenso
a incerta disposição das constelações pousadas no cimo das árvores mais altas
as luas moventes no coração do escuro pulsando com o avançar da noite
(a voz que sente é também agora a dela)
diz que sente a natureza na sua inquietação no movimento parado das pedras
luminosas no voltear dos insetos no crescer lento das plantas no esgueirar
impercetível dos animais e outros mágicos seres
e estes quando a ouvem sentindo
sussurram acesos pela noite dentro
sente as vozes da terra devagarinho em litania
sente como amar é esse abraço infinito
sente palavras que a voz não consente:
“(…) Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.”
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 8-11-1929)
4.
“Passei toda a noite, sem dormir, vendo sem espaço a figura dela”
como se me falasse como se me olhasse como se os meus olhos fossem os dela
e nesta confusão não sei se era eu que pensava ou se em mim o pensar dela se
mostrava de tantas maneiras e tão diversas
era estar de facto em sua presença
passei toda a noite sem dormir neste pensamento que se animava de muitas
formas e vi-a muito distraída ou intensamente olhando para dentro de mim
“Amar é pensar” mas ao pensar assim também é sentir
e sentir de muitas maneiras
eu que amo a natureza esta noite amo-a mais ainda
esquiva ela traz consigo um perfume intenso de flor de laranjeira açucena e miosótis
inebriado vejo crescer pelas paredes pequeninas trepadeiras luminosas e as
estrelas de lá de fora entram para o meu tecto e iluminam a minha insónia quase
etérea
quando estendo a mão para lhe tocar não sei se terá sido a minha ou a dela
estalar de dedos roda uma mão azul da noite dança
na minha mão encantada
“(…) Tenho uma grande distracção animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.”
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 10-07-1930)
5.
“Quando eu não te tinha”
amava a natureza sim, mas não a sabia tão intensa
tão inteira dentro fora de mim tão abraçada tão expandida
por exemplo quando as nuvens correm pelo céu parece que me levam
pela mão e eu voo já sem querer
sinto-me leve como se desde sempre soubesse voar
os meus olhos ficam brancos e azuis como elas
Sentado a teu lado muito reparo nas nuvens
religiosamente ganho asas não sei se de anjo ou de arcanjo
para melhor quando voas
te abraçar
vejo tudo mais nitidamente e de outra maneira mais comovida
e já nem preciso falar porque o silêncio acorda quando me vê
e o que eu vejo nele fala abundantemente rompendo da terra correndo nos rios
subindo ao céu
Sentado a teu lado o meu olhar é mais completo e se maravilha
quando te olho vejo a natureza cada vez mais próxima
o teu rosto desaparece nas nuvens
as tuas mãos desenham fitas transparentes
e um anjo senta-se a meu lado
por isso amo a natureza mais completamente
“(…) Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais.”
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 6-7-1914)
6.
“Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo”.
Eu já te vejo amanhã a colher estrelas comigo pelos campos.
Ficamos sentados à beira do rio a atirar pedrinhas
quando caem podemos ver estrelas multiplicarem-se em pequeninos pontos
cintilantes na água e no céu
Perdoa-me se digo que estou feliz mas na realidade tudo assim fica mais completo
eu tu o rio as pedrinhas e as estrelas
Gosto de ver no meio delas alta a lua aparecer uma espécie de alma repleta de fogo alaranjado
que se estende sobre o rio somente luar
Entende como este silêncio é uma verdade e convida a sentir que a natureza pode ser tudo
um céu nocturno abraçado à lua aqui pousada no rio
as estrelas caindo devagar para as apanharmos com as mãos
Na verdade nada sei da alma da natureza
sei que está sempre presente e não morre nunca
todos os dias trago os cabelos acabados de lavar com o brilho de pirilampos
olho para ti muito devagar em azul profundo e digo
antes de baixar outra vez o olhar:
“(…) Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.”
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 6-7-1914)
7.
“Agora que sinto amor”
a melhor coisa do mundo é não ter pensamentos
apenas sentir
dizes aspirando o ar verde da manhã
sentimentos? Ah isso tenho são eles que me guiam
só poderia ser sentindo quando eu falo assim
tenho um senhor no céu chamado sol
para ele me abro e lhe mostro o fogo do meu coração igual ao fogo da tua presença
respiro céu e terra da parte de trás da cabeça
onde termina um começa o outro no alto uma linha de azul intenso por baixo verde
rosa escuro quase violeta
sim em pleno verão tudo é possível nunca mais a vida terá fim
extasiado aspiro os perfumes como se fosse uma coisa nova
pergunto-te então:
como posso deixar-te nestes campos amanhecentes a sonhar sentindo todas essas coisas?
Vejo como te aproximas com cuidado de manhãzinha quando ninguém te vê
sentado olhando o horizonte enquanto as chamas do sol suspensas pelos
arbustos em fogo te sobem dos cabelos
queres tudo num único demorado instante
mas ninguém quer ouvir as impressões do mundo natural ou da natureza
o teu olhar mostra por dentro um paladar que cheira a mel e mostra por fora
um ardente coração solar
digo: não te conheço é certo
mas agora que acordo
sinto amor e perfumo-me contigo da primeira
luz da manhã que arde
e é verdadeira
“Agora que sinto amor (…)
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira”.
(Alberto Caeiro, “O Pastor Amoroso”, 23-7-1930)

ANA MAFALDA LEITE, poet, essayist, and professor with over 30 years of experience creating poetry: her first book of poems, Em sombra acesa, was published in 1984. She was born in Portugal but grew up and pursued her early university studies at Eduardo Mondlane University in Maputo, Mozambique.
She is a professor at the Faculty of Arts of the University of Lisbon, with a Master’s in Brazilian and African Literatures in Portuguese and a PhD in African Literatures.
She conducted doctoral and post-doctoral research at the School of Oriental and African Studies (SOAS) at the University of London, at the University of Rome, and at the University of Dakar.
She participates in academic and cultural events, panel discussions, and committees of institutions that promote reflection on the literature and culture of Portuguese-speaking countries. She was awarded the Femina Lusofonia Literature Prize in 2015. This prize honors Notable Portuguese and Lusophone Women, from Portugal, Portuguese-speaking countries, Portuguese and Lusophone communities, and Luso-descendants, who have distinguished themselves with merit in professional, cultural, and humanitarian fields around the world, through Knowledge and their relationship with other Cultures.
Among her books are:
- Em sombra acesa. Lisboa: Vega, 1984.
- Canções de Alba. Lisboa: Vega, 1989.
- Mariscando luas (em colaboração com Luís Carlos Patraquim e Roberto Chichorro). Lisboa: Vega, 1992.
- Rosas da China. Lisboa: Quetzal Editores, 1999.
- Passaporte do coração. Lisboa: Quetzal Editores, 2002.
- Livro das Encantações. Lisboa: Caminho, 2005.
- O Amor essa forma de desconhecimento. Maputo: Alcance Editores, 2010.
- Livro das Encantações – Antologia (1984-2005). Maputo: Alcance Editores, 2010.
- CineGrafias angolanas: memórias e reflexões. Org. com Carmen L. T. Secco, José Octávio Van-Dúnem e Ana Paula Tavares. [Ciências e Artes]
- CineGrafias moçambicanas: memórias & crônicas & ensaios. São Paulo: Kapulana, 2019. [Ciências e Artes]. Org. com Carmen Tindó Secco e Luís Carlos Patraquim.
- A poética de José Craveirinha (1991).
- Oralidades & Escritas pós-coloniais (2012).
