Há criaturas que não vivem: apenas estão fazendo hora para morrer.
Mário Quintana
Eis a imagem da tragédia: um corpo nu a baloiçar como uma peça de roupa no estendal. Aos teus olhos uma nuvem se adensa e anuncia a tempestade. Faz-se trovoada na tua alma que não crê na verdade atroz. E o silêncio que tomou a casa é o alerta para o desespero.
Náufrago na própria cama, lanças os braços ao redor à procura da mulher que de costume se deita ao teu lado. Continuas a apalpar, a bater com força dos punhos por cima do edredom, preenches todos os espaços do colchão onde esperas esbarrar com o seu corpo quente, seus cabelos encaracolados e o roçar dos pés, mas não, ficou-te apenas o cheiro à jasmins.
Desces as mãos sobre o chão, com o corpo a rastejar pelo tapete preto onde fazem caminho um par de chinelos, a roupa de dormir e um papel que se guarda caprichosamente no limite da cama. É nesse instante que voltas a virar a cabeça para a porta que dá acesso à sala de estar, de onde entra a luz ensombrada, meio dia, meio noite, não sabes ao certo.
O corpo balança levemente à favor da pequena brisa que podes senti-la fria a bater-te no rosto. Franzes a testa e a imagem vai se recompondo com nitidez escandalosa. Levantas, cais com o vigor das coisas mortas, a tua condição impôr-te os limites, tens apenas um pé para suportar o peso da vida. Adultos, os homens desaprendem a cair, já militares só tombam na desgraça da guerra, mas tu foste ao chão como uma serpente: sem pernas, nem braços para abrandar a queda. Choras. Choras como ris. Já não faz diferença. A desgraça e a ironia misturam-se, não podes correr para consertar o destino, Coronel.
***
O relógio de cuco na parede disfarça a monotonia na casa. Olhas para ti e concluis que tudo o que pensavas e no que acreditavas se diluiu nas memórias. Revives as tuas lutas e estás cada vez mais duvidoso sobre as causas que perseguias. Fazes agora as perguntas como uma criança que descobre o mundo: porquê, porquê, porquê. Mas não falas porque temes que ela te escute. Também não podes elevar a cabeça para o telhado, ela está lá.
Tudo à tua volta é ausência. As paredes da casa tomam um estranho branco-cinzento, retalhos da solidão que assola todos os cantos; três peças de madeira denunciam o que eram poltronas de um luxo que já não te lembras, mas que soldados como tu, o mereceram como honras da luta; no chão o parquet se desfaz, como feridas abertas na pele; brincam os ratos e não te importas que te façam companhia; um vaso de cerâmica com terra vermelha e folhas secas que se guardam, numa insistência que te causa nervos, mas não podes evitar nem te desfazeres, faz parte da dor que queres sentir, das razões que te queres dar para partir e deixar um traço de natureza viva. Observas tudo isso com a indiferença que se apossou de ti nos últimos tempos, desde que viste a imagem dela com a cabeça amarrada na corda suspensa no telhado, o corpo descoberto e os pés esticados, em posição de uma bailarina numa xingombela de despedida.
― O que queres de mim?
― Tudo o que me tiraste.
― Que querias que fizesse?
― Que me dissesses a verdade.
― Qual verdade? Qual verdade?
― Cobarde.
― Cobarde?
― Hipócrita.
― Isso dizes tu, daí onde te encontras.
― E tu, onde é que estás?
Silêncio. Há perguntas que não sabes dar resposta. Perguntas que atravessam o entendimento sobre ti mesmo. Aonde tu estás? Sentado, como uma coisa morta. Pior do que ela, estás no limbo, podes escutar a voz dela no além e os barulhos dos vivos, como os bêbados que dançam com as mulheres no bar da esquina, ignorando toda a tua angústia. Loucos consideram-te, mas isso não importa, pois loucos são eles que entregam suas mazelas no álcool e na cannabis anestesiante.
― Este lugar já foi outra coisa.
Praguejas, enquanto te lembras da antiga Sommerschield das elites que libertaram a terra e os homens, essa herança merecida, dos colonos que expulsaram. A casa ficou com Bia, que viu o bairro ceder à ausência de luxo de outros tempos. Enquanto tu te batias com uma nova guerra nas matas, à caça dos teus irmãos. Essa guerra que hoje chamas de maldita, porque tudo de ti deste, e ficou-te o silêncio. Da mulher que amas, não te lembras dos momentos felizes, nem da frustração dos sonhos que ficaram por se realizar juntos. Bastou que a levasses para casa, e no dia seguinte te deitavas com uma Kalashnikov nas trincheiras. Agora faltam os sons da AK 47, a cantar nos corpos alheios, falta-te a caça aos homens e as repentinas fugas ao inimigo sorrateiro. Onde está a glória?, perguntas-te.
Podias morrer de pena de ti, se ainda te importasses. És um homem a cair de velho antes do tempo. A juventude já te fugiu sem a felicidade das coisas simples da vida: cuidar de um cão, talvez, caminhar pelas ruas arborizadas da cidade e deixares que o vento fresco toque a tua pele e alentar o estado de espírito; podias, talvez, ler uns livros ou ocupar uma mesa nos cafés e discutir as notícias da nação, como quem se importa com o correr dos dias; ou ouvir música pelo menos. Tudo isso que fazem as pessoas na idade que tens. Mas nada disso te excita. Tens a alma moribunda. A morte te cerca. Reparas como os ratos já não se importam com a tua presença, dançam e correm alegres, donos do espaço; as aranhas construíram estradas aéreas e circulam livres, como aviões que cruzam continentes, mas sem a pressa imposta pelos humanos.
Bia matou-se. E tu só viste a morte consumada. Enquanto seu corpo andava pela casa, eras incapaz de enxergar a angústia a consumir-lhe por dentro.
Passam dias que não dormes, mas cumpres o ritual de quando ela era viva. Vais à cama e te deitas no lado esquerdo, contra a parede, deixas o lado da janela para ela. O pesadelo faz-te levantar à mesma hora que a viste morta no meio da sala: às 5h13. Nesse desespero que se tornou rotina foge da tua consciência que já não tens os dois pés dos tempos da tua glória. A tua perna esquerda foi amputada nos derradeiros momentos da guerra civil e tão cedo voltaste para a cidade onde as honras te esperavam. Herói de guerra. Eras para a nação a foto panorâmica, uns viam o homem amputado, significado do canibalismo dos insurgentes, outros, viam a esperança, essa que não deve morrer, em nome da unidade.
Esta é mais uma manhã em que te levantas da cama e rastejas até à varanda. A morte está aí para a contemplares, inevitável e próspera. Um morcego caído morto está cercado de formigas e moscas que o celebram como um banquete dos preteridos. Tu não conheces essa alegria instantânea que vêm da falta e da fragilidade. Por tudo fizeste para teres o que querias. Mas não contaste com a coragem de uma mulher que amava outro homem, a quem tudo fizeste para a tirar. Não contaste que um dia a verdade podia ser fatal como a arma que apontas ao inimigo e heróis te tornas por matar em nome da liberdade, Coronel. Observas com certo interesse os dentes do animal noturno, esse prenúncio de todas as desgraças. Ele lembra-te que és o Coronel. Estás no lado certo da história, ainda que amputado e viúvo de quem nunca te amou.
***
Bia era uma cantora num cabaré da cidade. Foi aí que a conheceste. Dizes que a achaste, como se apanha nos escombros uma relíquia. Nos silêncios das armas, sua voz preenchia as almas de uma nação sedenta de emoções que não fossem o horror dos mortos. Essa era uma cidade imersiva, onde tudo se cruzava, tudo misturado, mas nada claro, nem definido. A guerra ali não havia chegado. Tu já vivias nela, como militar, mas antes que fosses para a derradeira batalha, encontraste o encanto nos olhos, na voz e no corpo dessa mulher. Ela tinha de ser tua. Custasse o que custasse. Tu és o Coronel, honrado pelo alto desempenho na guerrilha, premiado por combater pela soberania, contra os inimigos dos ideais do povo.
Do outro lado estava Bia, a mulher por quem todos os homens construíam fantasias, a imagem do futuro, da vida urbana por que se luta e se acredita. E os militares, como tu, eram uma classe honrada, prometida, embora magoada, eufórica, deuses. Quem não queria estar com homens assim? No tempo da incerteza, tinham comida, tinham carros, tinham a farda do livre-trânsito e arbítrio, por isso, tinham também as mulheres.
«O que querem as mulheres? Segurança e fartura. E o que sonham? Um futuro melhor. Quem melhor do que um militar para ter como companheiro? Adelaide foi o meu achado», dizias, a bater no peito como se fizesses juras de amor à pátria, de arma erguida.
Coronel, com toda a honra, havias sabido amar e adorar a pátria sobre todas as coisas. Havias aprendido que a terra é tua e sobre ela mandas. Que amor nenhum seria maior e teria valor sobre este solo onde jazem os mártires e heróis conhecidos e desconhecidos. Eras herdeiro de uma nação que se construiu com mãos e utopias. Os sonhos movem o mundo, disso já sabias desde a puberdade, quando a missão chamou-te em prol de uma causa maior.
Em tempos de guerra ninguém espera amar uma mulher. E como se não bastasse, ter de lutar por esse amor. A tua luta foi na proporção dos teus recursos: com a arma, a farda e uma autoridade que os comuns mortais não podem escapar.
Quando soubeste quem era a mulher para além do palco, do microfone e da voz, não te demoveste do que sentias. Tu, Coronel, como podias recuar perante uma adversidade. Bia era casada e esperava um filho. Isso não importou. Mandaste buscar o marido dela para o exército, com ordens expressas colocaste-o na linha da frente de combate. Uma frente que era anunciada como vitoriosa, mas que tu sabias que era mais sangrenta que um matadouro. Mandavas o infeliz para o leito da morte. A morte que já era certa desde que deitaste os olhos na esposa, a quem passaste a anunciar como tua mulher. Tua como os títulos que ostentas. Tua como estas lembranças que não consegues apagar.
Bia foi, depois da pátria, a causa que passaste a dedicar. Guardaste-a nessa casa do bairro nobre reservado aos libertadores. És um libertador. Libertaste essa mulher do amor da vida dela. Tiveram quarenta dias a viver sobre o mesmo teto até voltares para as zonas onde lideravas as batalhas. Foram os quarenta dias que te deste ao propósito do sexo diário, como um tratamento para que ela esquecesse o passado, o marido que amava. Quarenta dias para que o corpo dela assumisse o teu corpo como companheiro e o bebé que ela esperava, se tornasse teu. Como se na troca dos fluídos do sexo que ela se dava igual a um soldado cumpre ordens, fosse possível o fecto assumir a tua fisionomia e nas veias corresse o teu sangue.
Nessa casa viveram essa relação feita de ordens e imposições. Sobre essas paredes viveram dois seres talhados pelo desacordo. Vias-te como um homem generoso, e a ela, a mulher ingrata, que não sabe a sorte que tem.
Vistas agora as coisas, como as vês, Bia estava numa relação igual a essa casa: um conjunto de paredes de onde não reconhece uma saída. Com o teu regresso, herói cantado, e os anos passados e com a angústia a corroer as suas artérias, compreendeu que a vida a levou para um lugar sem retorno.
Em poucos dias que tu estavas de volta ela já havia tomado a decisão e ainda deixado escrito numa carta o que não podia dizer-te olhos-nos-olhos. Até porque passavas o tempo embriagado, ela sabia que a verdade já te corroía que não a suportavas sem álcool. Mas ela estava ainda pior, não suportava seu próprio corpo, por deitar-se ao lado do homem que a tirou dos braços de quem ela verdadeiramente amou.
A morte por conta própria foi-lhe decretada quando conheceu-te. Naquela manhã que te reviraste da cama sobressaltado foi apenas a data que ela escolheu que se escrevesse na história. Que morria por vontade própria a mulher chamada Bia, nua como veio ao mundo, a baloiçar como pedaço de carne no açougue, como se quisesse que o mundo a visse tal como era para ti.
***
Agora tens o corpo como uma coisa estranha. De repente ele ganhou essa imagem e peso. A dor tira-te o discernimento. Os teus dias fazem-se de pesadelos. Continuas a sonhar com ela no meio da sala morta. Aprecias a coisa estranha em que te tornaste. As honras já não te preenchem as medidas. És um amputado, vem-te, de repente essa consciência, quando estás só. Bia matou-se. Já não és jovem e não te podes firmar militar nem homem honrado de outrora.
― Que queres de mim.
― Que quero de ti? Eu?
― Sim. Sei que me culpas. Sei que achas que sou o autor das tuas desgraças. Mas eu não te matei.
― Não mataste?
― Como ousas me acusares. Eu, que te tornei alguém. Dei-te tudo. Quem serias tu a estas alturas?
― Falas de mim como se fosse viva. Vê bem. Morri.
― Que queres que faça, Bia, que queres que faça.
― Quero que morras.
― A morte não me assusta.
― Bem se vê, olha para ti. Esse é o herói.
― A morte não me assusta. Nem tão pouco.
― Cobarde.
Reviras o copo. Bates a cabeça com a força das mãos. Desconhecias onde fica o limite entre o sonho e a ilusão, a imaginação e o desejo, o drama e a tragédia. Uma mulher quando abandona um homem que lhe jura amores e ele fica devastado, sente-se traído, enganado, abandonado, é drama ou tragédia? Para os outros é drama, no teu coração é tragédia. Para os homens com uma certa autoridade é ainda pior. Tu que com arma mataste, morrerás de amor?
E então voltas ao princípio das coisas, como se as palavras fizessem eco. E fazem réplicas os estrondos no âmago do teu silêncio. É de manhã e a morte ronda o teu pensamento na voz de Bia. Ela de cara limpa, a sorrir, lábios vermelhos, os olhos a cintilar e os cabelos com tranças cumpridas, serena, mesmo com o pescoço preso na corda que balança do teto.
Diz-se que a morte chega no corpo antes que a mente se dê conta. Tu que viveste os horrores dos homens, não te passou pela cabeça que havia coisa pior: a a angústia de uma mulher. Uma lágrima deixa-se cair dos teus olhos com toda a angústia que não consegues suportar. Agora só um pedaço de papel te leva até Bia. Uma carta que já a leste quatro vezes, mas continuas sem conhecer o sentido de certas palavras. Então lês pela última vez, prometes para o teu coração.
«Vou-me embora. Na verdade, aqui nunca estive. Tenho o coração livre. Eu, a dramática, à procura da vida esquecida, perdida algures, no sonho da liberdade. Sei o que pensas sobre isso. Que a liberdade vem da luta, da força. Mas para mim é leveza e encanto, o amor das pequenas coisas e das grandes, tão grandes que não podes enxergar no alto do teu patriotismo. Isso eu reconheço em ti. A honra de um soldado. Mas não podes dar essa honra ao meu corpo, à minha consciência. Tu sabes do que falo, mas também já não importa. Vou atrás de tudo o que me tiraste. Vou de volta à vida».
Um estranho silêncio toma conta do bairro. Teu corpo está molhado de suor que encontra uma porta de saída entre os poros. Falas com precisão cada palavra e a boca espuma pelos cantos.
― Basta… basta… basta….
Tens o olhar sereno de Bia. Respiras no final de cada palavra e pareces procurar sempre que elas não caiam no vazio. Na verdade, os mortos sabem de tudo, de onde se encontram não se lhes pode esconder os sentimentos. Ela está morta, mas tu falas com ela como uma alma presente. Enquanto te caem as lágrimas um discurso inflamado vem do teu interior. Isso é o que podes fazer para curar a tua consciência.
Vais até a varanda. Contemplas na rua o suave movimento das acácias, um corvo da índia pousa nos cabos elétricos e canta. Viras-te para o interior da casa. Na parede está o retrato de Bia, com o rosto escuro, os olhos brancos, o cabelo com tranças cruzadas e os ombros descaídos, mas com os seios em pé, como se desobedecessem a vontade do corpo esqueléctico. Enfim, te vêm como uma luz a infelicidade estampada no seu rosto. Acenas com um adeus e quando te dás conta, já o corpo deita-se sereno no asfalto.

Eduardo Quive, Fotografia de Adelium Castelo.
Eduardo Quive was born on June 8, 1991, in the city of Matola, Maputo Province, Mozambique, where he currently lives. He is a writer and journalist, also working in the areas of curation and production of literary events. He began working in communications around 2010, dedicating himself to cultural journalism from 2012, with experience in newspapers, magazines, and television. For two years, he worked in literary criticism in the Mozambican press, publishing in the newspapers Sol, Notícias, and Debate. He edited RADAR – a weekly newsletter about Art, Creativity, and Innovation for the Maputo Fast Forward festival, writes for ÍNDICO – the in-flight magazine of Mozambique Airlines, and is the communications coordinator at the Fernando Leite Couto Foundation. He has published articles in international media on arts and literature, including the African literary magazine Brittle Paper, and in Portugal’s Sábado magazine and Buala.
He was editorial director of the magazine LITERATAS and co-founder of the Mozambican author platform and publishing house CATALOGUS. In 2018, he collaborated on organizing the World Press Photo international exhibition in Maputo, brought by the Embassy of the Kingdom of the Netherlands.
He published the short story collection Mutiladas (Catalogus, 2024), Para onde foram os vivos (poetry, Alcance Editores, 2022), and Lágrimas da Vida Sorrisos da Morte (poetry, Literatas, 2012), and is co-author of the books Estórias para além do tempo – Paulina Chiziane entre Moçambique e Brasil (Essays, Instituto Guimarães Rosa Maputo, 2023), Brasil & África – Laços Poéticos (Poetry, Editora Letras, 2014); as well as co-organizer of the collections Contos e crónicas para ler em casa Vol. I and Vol. II (Literatas, 2020) and of O Abismo aos pés (Literatas), a book that includes interviews with 25 Lusophone writers about the imminence of the end of the world, during the peak of the COVID-19 pandemic.
In 2022, he held a literary residency in Lisbon after winning the Maputo-Lisbon Literary Residency Program, promoted by Camões – Portuguese Cultural Center in Maputo and the Lisbon City Council. In 2024, he was selected and participated in the CANEX Creative Writing Workshop, led by Chimamanda Ngozi Adichie, held over 15 days in Aburi, Ghana. In 2025, he was a resident author at Sangam House in Bangalore, India, where he completed his novel. He has been curator and producer of several events, including: Festival Literário Resiliência (2019–2021) Minerva Bookstore Book Fair (2015–2019), Anonimus – Literary Manifesto, and Novas Narrativas para Moçambique program at Casa do Professor in Matola. His work includes collaborations with artists from different disciplines, such as contemporary dance and visual arts, writing texts for catalogs and for performances.
