Ricardo Tiago Moura

(são as mãos)

São as mãos que dizem a verdade: quantos dias são: quantos rios ou quantos dedos. Contamos as casas como se fossem elas o segredo e guardamos nas casas os segredos. Guardamos debaixo da pele a idade das flores sem que nunca lhes falte água: como cuidamos dos empregos e das noites. Como cuidamos dos rios para que nunca nos falte água. As casas escondem as formas mais exactas: a própria curva das águas. Mas são as mãos o nosso segredo mais escuro. São os dedos que indicam o caminho aos rios.

in pequena indústria, ed. Tea for One, 2016

(restam)

restam fachadas: vizinhas

conversas vazias do bairro

de nada de pedra esfarelada:

tanto transparecem na tarde

alguma falta de interior

pose de ruína

despreocupada:

como caem os muros

às mãos do homem

demolidor:

telhados abrem

nossa falência

e restam fechadas:

portadas honestas

uma osga

cimento

sem companhia

in Cruzes, ed. Alambique, 2018

(‘fugas para dois’)

so go ahead and write a fugue that we can sing

Glenn Gould, 1963

Apenas o começo

obedece a regras bem claras,

dizias.

Naquele Verão, quando todas as nuvens

desapareciam,

perguntaste se não devíamos,

se não seria perfeito?,

planear uma fuga.

A cidade brilhante,

o rasto de dois aviões

em alturas diferentes de azul,

os pacotes de viagens ou a falta

de notícias em tudo anunciavam

o destino que sozinho

adivinhaste:

            uma fuga seria ignorar

            os padrões da paisagem muda.

            Há que evitar o uníssono em nós,

pensarias,

esse cúmulo de assuntos em cima

da mesma mesa de jantar ou as vozes

outras em demasia

sem nunca esquecer a independência

da sombra das partes.

            Mas apenas o quarto e enevoado plano

            ao fundo da imagem

me dizia

que éramos, então,

cores em contraponto.

            Se podíamos agora escrever uma fuga?

Seria preciso ficar contra

o frio da vida livre algures, o carro

ligado à espera lá longe,

e achar por fim o tom

certo ou principal.

            Saber que não podemos criar

            espaço sem evitar o vazio.

in Já não dá para ser moderno: seis poetas de agora, ed. Flan de Tal, 2021

(uma pessoa permanece)

uma pessoa permanece / em pé / em pose quase parece / nada mais que algo / absolutamente encharcado / apesar das vestes / impermeáveis / sobre um corpo / magro / provavelmente molhado / apesar da mochila de entregas / também ela corpo / vestido de impermeável / e molhada // (descrever o essencial / acerca desta pessoa / assim aqui / desta forma / de habitar / o espaço público / privadamente / sem direitos / ou casa) // uma pessoa permanece / em pé / estacionada / em cima da grelha de ventilação / do metro ou talvez / do parque de estacionamento / onde as viaturas / confortáveis / lavadas / automaticamente / como casas-móveis / aguardam pela manhã / seus ocupantes / lavados / brilhantes todos / pessoas brancas / escuras as viaturas / reluzentes / os motoristas / pelo menos de dia // uma pessoa permanece / em pé / oculta na sua sombra / deformada / tão evidente mas / invisível / figura oleada / indigna mas / exposta à noite / que nos é dada / dentro do real / já tarde / simultaneamente turvo / e culpado / este sítio em que todos / moramos vizinhos / agora à distância / completamente imundos / alguns sentados / alguns dormindo / por turnos / outros não existindo / esta pessoa em pé / tantas e tantos / caídos // uma pessoa permanece / molhada / encharcada enxuga / os sapatos / descalça as peúgas / seca a dobra / das calças ensopadas / da água pesada / dos trabalhos / deixa-se estar / junto ao ar quente / como em casa / indiferente // (depois de partilharmos / por quatro minutos / um metro quadrado / que não é divisão / nem chão / mas grelha metálica / diferença e fronteira / mero sopro de ar / nem quente / expelido pelas entranhas / da cidade ilhada / volto ao meu caminho / e ela também / à sua bicicleta / ‘glovo’ / e juntos / sem nada em comum / palavras sequer / só por coincidência / mais do que por circunstância / ocupámos o mesmo / íntimo quarto / que nem durou / uns quatro minutos / que nem lugar / foi) //

uma pessoa permanece em pé

uma pessoa descansa em pé

uma pessoa permanece em

uma pessoa desaparece

uma pessoa perece

uma pessoa

uma

(inédito)

Ricardo Tiago Moura was born in Coimbra, June 1978.

He has published the books ‘Um gato para dois’ (Hariemuj, 2013; não edições, 2015), ‘Epístolas a D.’ (não edições, 2013), ‘pequena indústria’ (Tea for One, 2016), ‘Cruzes’ (Alambique, 2018), ‘Sr Estrôncio’ (Flan de Tal, 2020), and ‘Comunidade | Comunicante’ (não edições, 2024). He also published the artist books ‘Controlo de qualidade’ (self-published, 2017) and ‘Política’ (não edições, 2020).

His chapbook ‘Espaço aéreo’ (Arqueria, 2014) was published in Brazil, and later translated into Spanish and English and published in Peru (Amotape Libros, 2015) and in the United Kingdom (Carnaval Press, 2017). ‘Epístolas a D.’ was reissued in 2018 in Brazil/Denmark by Zazie Edições. The book ‘Política’ was released in 2021 in Brazil by Edições Macondo, as part of Year III of A Colecção (contemporary Portuguese poetry).

He has also published poems in anthologies and magazines.
He also works with collage.


He lives in Køge, Denmark.