(são as mãos)
São as mãos que dizem a verdade: quantos dias são: quantos rios ou quantos dedos. Contamos as casas como se fossem elas o segredo e guardamos nas casas os segredos. Guardamos debaixo da pele a idade das flores sem que nunca lhes falte água: como cuidamos dos empregos e das noites. Como cuidamos dos rios para que nunca nos falte água. As casas escondem as formas mais exactas: a própria curva das águas. Mas são as mãos o nosso segredo mais escuro. São os dedos que indicam o caminho aos rios.
in pequena indústria, ed. Tea for One, 2016
(restam)
restam fachadas: vizinhas
conversas vazias do bairro
de nada de pedra esfarelada:
tanto transparecem na tarde
alguma falta de interior
pose de ruína
despreocupada:
como caem os muros
às mãos do homem
demolidor:
telhados abrem
nossa falência
e restam fechadas:
portadas honestas
uma osga
cimento
sem companhia
in Cruzes, ed. Alambique, 2018
(‘fugas para dois’)
so go ahead and write a fugue that we can sing
Glenn Gould, 1963
Apenas o começo
obedece a regras bem claras,
dizias.
Naquele Verão, quando todas as nuvens
desapareciam,
perguntaste se não devíamos,
se não seria perfeito?,
planear uma fuga.
A cidade brilhante,
o rasto de dois aviões
em alturas diferentes de azul,
os pacotes de viagens ou a falta
de notícias em tudo anunciavam
o destino que sozinho
adivinhaste:
uma fuga seria ignorar
os padrões da paisagem muda.
Há que evitar o uníssono em nós,
pensarias,
esse cúmulo de assuntos em cima
da mesma mesa de jantar ou as vozes
outras em demasia
sem nunca esquecer a independência
da sombra das partes.
Mas apenas o quarto e enevoado plano
ao fundo da imagem
me dizia
que éramos, então,
cores em contraponto.
Se podíamos agora escrever uma fuga?
Seria preciso ficar contra
o frio da vida livre algures, o carro
ligado à espera lá longe,
e achar por fim o tom
certo ou principal.
Saber que não podemos criar
espaço sem evitar o vazio.
in Já não dá para ser moderno: seis poetas de agora, ed. Flan de Tal, 2021
(uma pessoa permanece)
uma pessoa permanece / em pé / em pose quase parece / nada mais que algo / absolutamente encharcado / apesar das vestes / impermeáveis / sobre um corpo / magro / provavelmente molhado / apesar da mochila de entregas / também ela corpo / vestido de impermeável / e molhada // (descrever o essencial / acerca desta pessoa / assim aqui / desta forma / de habitar / o espaço público / privadamente / sem direitos / ou casa) // uma pessoa permanece / em pé / estacionada / em cima da grelha de ventilação / do metro ou talvez / do parque de estacionamento / onde as viaturas / confortáveis / lavadas / automaticamente / como casas-móveis / aguardam pela manhã / seus ocupantes / lavados / brilhantes todos / pessoas brancas / escuras as viaturas / reluzentes / os motoristas / pelo menos de dia // uma pessoa permanece / em pé / oculta na sua sombra / deformada / tão evidente mas / invisível / figura oleada / indigna mas / exposta à noite / que nos é dada / dentro do real / já tarde / simultaneamente turvo / e culpado / este sítio em que todos / moramos vizinhos / agora à distância / completamente imundos / alguns sentados / alguns dormindo / por turnos / outros não existindo / esta pessoa em pé / tantas e tantos / caídos // uma pessoa permanece / molhada / encharcada enxuga / os sapatos / descalça as peúgas / seca a dobra / das calças ensopadas / da água pesada / dos trabalhos / deixa-se estar / junto ao ar quente / como em casa / indiferente // (depois de partilharmos / por quatro minutos / um metro quadrado / que não é divisão / nem chão / mas grelha metálica / diferença e fronteira / mero sopro de ar / nem quente / expelido pelas entranhas / da cidade ilhada / volto ao meu caminho / e ela também / à sua bicicleta / ‘glovo’ / e juntos / sem nada em comum / palavras sequer / só por coincidência / mais do que por circunstância / ocupámos o mesmo / íntimo quarto / que nem durou / uns quatro minutos / que nem lugar / foi) //
uma pessoa permanece em pé
uma pessoa descansa em pé
uma pessoa permanece em
uma pessoa desaparece
uma pessoa perece
uma pessoa
uma
(inédito)

Ricardo Tiago Moura was born in Coimbra, June 1978.
He has published the books ‘Um gato para dois’ (Hariemuj, 2013; não edições, 2015), ‘Epístolas a D.’ (não edições, 2013), ‘pequena indústria’ (Tea for One, 2016), ‘Cruzes’ (Alambique, 2018), ‘Sr Estrôncio’ (Flan de Tal, 2020), and ‘Comunidade | Comunicante’ (não edições, 2024). He also published the artist books ‘Controlo de qualidade’ (self-published, 2017) and ‘Política’ (não edições, 2020).
His chapbook ‘Espaço aéreo’ (Arqueria, 2014) was published in Brazil, and later translated into Spanish and English and published in Peru (Amotape Libros, 2015) and in the United Kingdom (Carnaval Press, 2017). ‘Epístolas a D.’ was reissued in 2018 in Brazil/Denmark by Zazie Edições. The book ‘Política’ was released in 2021 in Brazil by Edições Macondo, as part of Year III of A Colecção (contemporary Portuguese poetry).
He has also published poems in anthologies and magazines.
He also works with collage.
He lives in Køge, Denmark.
