Ricardo Marques

BIOGRAFIA

fugi de grupos e de grutas

engrandecidas

olhei para trás para olhar

em frente

mesmo quando o amor

se perdeu

não me perdi

nem me alistei

como orfeu

polifonicamente cantei.

CELESTE CAEIRO

Nasci nesta cidade onde sempre trabalhei
e tenho quarenta anos, quarenta e um
daqui a uns dias

Tomei a liberdade de me levantar cedo
neste dia de Abril e de ir trabalhar
apesar deste tempo tão frágil tão difícil
apesar de não ter flores para vender
Eu nunca tive flores para vender

Toda a gente acha que fui florista
tomam a liberdade de o achar
mas trabalhava num simples café
é esta a verdade

O que realmente se passou foi que tomei
um braçado de cravos que tinham vindo
de Tavira
Tomei essas flores nas minhas mãos
e fui para casa, desci à cidade

O que fiz talvez tenha sido
Tomar a liberdade nas minhas mãos
para a passar aos outros:

Em cada cano de espingarda uma flor

O meu nome é Celeste Caeiro
nome do poeta a quem Pessoa chamou
de mestre porque quase não sabia ler
mas sabia mais do que os outros.

Hoje em dia alguns tomam a liberdade
de me chamar Celeste dos Cravos.
E eu não me importo.

Sei que a liberdade pode ter muitos nomes
habitar muitos céus como o do meu nome.

(poema inédito em livro)

RIQUEXÓ

Esta civilização soube avançar 

e cumprir em pleno o propósito 

divino de olhar para a frente

com os pés no presente:

em Hoi An como Hanoi ou Ho Chin Minh

o riquexó mecânico a todos transporta 

como antes a força de membros

vértebras e músculos

não há museus para o tempo passado

pois o estilo os costumes a terra

foram sendo actualizados

no Ocidente restou-nos ficar 

com a palavra tuk tuk

(inédito)

DA FORÇA

Tanto impele para cima

como para baixo

Está no punho, no pulso

da alma – no desejo

de procurar o que nos espelha

o que acalma e nos fere:

Na carne tem o cerne

por isso se diz que é fraca –

o que falta à força é quem

a faça forte porque nem a morte

a mata

só a desistência.

DA MORTE

É preciso morrer imenso

os mortos não se metamorfoseiam

na morte, vivem sempre sem que

o corpo os siga

e como um vírus camuflado

putrifica, também a morte

é sangue doente que apenas

o amor pode purificar

precisamos então de morrer para viver

de novo em todos os instantes

porque em todos os momentos

não nos podemos dar ao luxo

de morrer nesse momento das

nossas vidas.

DA METAMORFOSE

A vida pode assumir múltiplas formas

e as formas podem assumir múltiplas vidas

duas mãos entrelaçadas não são

já duas mãos isoladas, mas

um troféu do amor

um laço inquebrantável

uma fonte de beleza

ou outra qualquer metáfora cintilante

de natureza simples.

Escuta o que a energia te diz

para além da forma que tens

em frente:

enfrenta o que o silêncio

metáfora eloquente e antiga

te diz do âmago das coisas.

VARIAÇÕES SOBRE O ANTÓNIO

De braga a nova iorque, pois sim,
porque não há nada que liberte
mais do que a viagem do sentir, da
criação. Aqui transbordam poços,
porém: transpiração, inspiração,
fôlego para correr e vibrar, vinho
novo em garrafas novas, ou uísque
da escócia com broas de amares.
Depois uma tesoura na mão e um
bigode pintado, um trapinho
colorido, a canção que se engata
numa noite de engate num
qualquer bar da cidade, onde a
morte se joga. Mas vá, eu não te
quero impressionar, nem
consumir-te, só celebrar-te:
nenhum antónio variou menos no
talento, tão grande quanto a
barba, numa vida tão curta: é que
o corpo paga letalmente quando a
cabeça tem demasiado juízo.
E para isso não há cura.

DEFORMAÇÕES

Dizes que agora

falarás da forma,

mas de que forma?

De formações na rocha,

ou camadas geológicas

em vez das vozes

da memória?

Dos deuses dizes

a forma, anseias por ela

mas nunca a saberás –

falarás então da forma

mas só encontrarás

deformações

Ricardo Marques (Sintra, 1983) is a poet and translator, having translated into Portuguese dozens of poets, including Anne Carson, Billy Collins, and Patti Smith.

He earned his PhD in 2010 with a doctoral thesis titled Na teia do poema – um percurso intertextual na obra poética de Nuno Júdice (“In the Web of the Poem – An Intertextual Journey in the Poetic Work of Nuno Júdice”), which was later published as a book in 2013.

In 2021, he published the anthology Já não dá para ser moderno (“It’s No Longer Possible to Be Modern”) with Flan de Tal (Vila do Conde), in which he presents readings of six contemporary Portuguese poets. That same year, with the same northern publisher, he organized and published a commemorative anthology marking the 50th anniversary of the April 25th Revolution, titled Direito de Resposta – 25 poetas nascidos depois do 25 de Abril conversam com poetas do passado (“Right of Reply – 25 Poets Born After April 25 in Dialogue with Poets of the Past”).

In 2022, he published Desiderio, a personal anthology of both previously published and unpublished poems, exploring themes of love, beauty, and desire (Lisbon, não [edições], 2022).

In 2023, he was awarded a literary creation grant by the Ministry of Culture to write a new poetry book, which was published in 2024, also by Flan de Tal, as part of the Elementário collection, under the title Chumbo (“Lead”), a poetic essay on the year 1959 in Portugal and around the world.