A PALAVRA NO CO(R)PO
Na curva do equinócio de verão, Plínio e Baudelaire,
puxam-me pelos pés.
Tiram-me da cama.
Tempo da
apanha da
palavra.
Assento chapéu de palha,
na cabeça,
calço botas,
levo bloco de notas,
Caneta! Não te esqueças
Pelo torpor da cálida alvorada,
sigo desnuda.
Velho e poeta
alegres, embriagados
cantarolando desafinados.
O que de mim vem ou do outro?
Bela ajuda.
Tempo de escrita.
Fazer brotar a fertilidade pujante
encerrada nos bagos,
na fruta da videira.
Subir pela trepadeira.
Passo a passo
do sonho verdejante
à vida.
Que graças e louvores me trarão vindimar palavras?
Uma a uma serão colhidas.
Ai de mim!
Ai de mim, não buscar os milagres da arte do mosto.
Ai de mim!
Ai de mim, deixar aqui
adormecer este escrito.
Perder a noite pagã,
a Bago não me abraçar.
Quem sabe não serei eu flor do vinhedo,
timidamente
alegrando os vales
dos rios a noroeste.
Não tivessem Tâmega, Douro, Sousa margens,
mais eu me errasse
mais eu me sentisse
verde verdade
da videira.
No palco da folha branca,
da uva,
nascem outras coisas.
Depuro sentimento
delico-doce.
Troco uvas por vinho
Vinho por palavras.
Palavras pela verdade.
«Tira a mão do caldo de letras.»
Por ninguém pode o cálice ser tocado.
A ti, como a mim –
– com muita razão –
a cada gole de vinho verde
atrai-nos plantar os afetos em terra de ficção.
Íris assobia.
Desperto
Morfeu abraço
do outro lado
Sou vinha.
Bacanal de palavras:
são largas, redondas,
são estreitas, finas,
são tortas, direitas.
Amontoadas, prensadas,
acariciam-se umas às outras,
Traço único imaturo do pico frisante.
Pelo canto do olho, vejo outras que surgem
a tinta verde,
esperança.
E ainda…
quão suave e aberto é o meu espírito quando mudo não é o vinho.
Nada a obstar.
Nas frases (des)encadeadas deste coração
recaí por mil vezes em sua voz rorante.
Nada a obstar.
O mundo está
chato, asséptico.
Furta -se a profanas felicidades.
Sabem?
Da escrita nasce outra coisa
Fermentam-se as palavras
chega-se ao celestial e misterioso manifesto:
Do bom vinho nasce poesia.
PERPÉTUA RUÍNA
amanhã
saberei das estátuas de pedra
no primitivo palácio
com suas paredes forradas
a veludo verde
chão alagado
pela bonança anil
do sangue
chovido pelas águas parideiras
Mães de
bacias profundas de
rios lagos pântanos
saberei do tempo quando
nas nossas mãos guardávamos
firmamento desanuviado
sopé dos dias
arbusto
sombra
abelha
milho
voo de andorinha
do tempo quando
no palácio com tectos ocelados
aclamávamos Yemenjá Oxum Obá
Euá
com vida e folia
nas nossa entranhas
já de ontem
conhecíamos
tempo fragmentado
já sabíamos do
acreditar
na
hora inversa à nossa morte
Ah!
endeusávamos o tal mercantil
fingidor de realeza a peso de ouro
falsa sorte
Ah!
seguíamos
sabendo
do futuro frangível
continuávamos
na insensatez eximida
Ah! Ah!
falso espanto de surpresa
acreditávamos enfraquecidos
nos errares deste homem
declinador do versar da terra
homem apascentado pela tola pretensão
há tempo
não nos sobejou
tempo ou
vagem de fantasia
ou ainda
leito de húmus vicejante
primavera
colar de flores
hoje
pelos olhos não conhecemos os seres
nos peitos pesa a falta de ar
seguimos
acreditando na sorte
pudesse eu ainda
erguer contigo
um templo arborizado
olhos nos olhos
alumiar o viço
a mato
é tarde
dizes-me
amanhã chegará a morte
fim

Yara Nakahanda Monteiro was born in Angola in 1979 and moved to Portugal when she was two years old. She writes poetry and fiction. Monteiro studied screenwriting and contemporary art. She has collaborated in the creation of scripts and screenplays for audiovisual arts and is a curator for podcast programming. Her stories and poetry have been published in various magazines such as Granta and Revista Pessoa. She is a regular guest speaker at universities on topics like feminism and Afro-European identities and narratives. Monteiro graduated in human resources and has worked in this field for 15 years, as well as in diversity & inclusion and in talent management. She has lived in several cities, such as Rio de Janeiro, Luanda, London, Copenhagen, and Athens.
In her own words: she is a great-great-granddaughter of slavery, a great-granddaughter of racial intermarriage, a granddaughter of independence and a daughter of the diaspora.
