Palestina
I
Olho para o céu.
Os cadáveres se multiplicam como estrelas.
há constelações de crianças sem nome
derramadas sobre a terra.
Cães famintos vagam livres
Saciados passeiam felizes,
levando nas bocas braços e pernas
dos nossos irmãos.
Nós, de olhos fundos,
roemos o silêncio,
famintos de pão e de paz.
Eles sorriem,
como se um relâmpago no rabo balançasse o tempo.
II
Quem é esta que caminha sobre as ruínas?
— Sou um corpo devastado,
uma casa prestes a desmoronar
III
Lesionadas
as casas partem-se.
A cada minuto ouvimos estalos.
Das casas ou desta dor que em meu peito ribombeia?
IV
Em tempos de guerra,
as casas sangram pelas paredes.
Os corpos dos nossos irmãos
são tijolos de um plano arquitetado
para apagar o nosso nome da terra.
É Impossível escrever poemas
Meu povo está morrendo.
A realidade é uma mãe com um filho morto nos braços.
V
Meu filho mais novo me pergunta:
“Mãe, quando terminará a guerra?
Nesta hora uma parede caiu
levando com ela a penúltima viga da minha esperança.
VI
Nem oliveira e nem figueira.
O fim da guerra é distante.
ESTAMOS FAMINTOS!
O mundo civilizado mastiga notícias,
assiste a nossa morte,
testemunham a nossa fome
e o nosso desespero.
Silenciosos,
bebem vinho
ao lado do noticiário,
enquanto testemunham
impassíveis
o desespero servido à mesa
como entrada.
Do alto de um apartamento
na Avenida da Liberdade,
enquanto comem morangos e framboesas,
a burguesia lisboeta
debate a política nacional do país.
Em Odemira,
Sushila, Danish, Navid,
Karki Sarwati e Dolma Tamang
separam sementes
e cravam as digitais na carne aberta do chão
Trabalhadoras,
trazem terra no canto das unhas
e tristeza florindo no horto dos olhos.
Um idioma desconhecido.
Duas palavras é tudo que sabem
da nova nação.
Comendo o pão que o diabo amassou,
dormem em casas sobrelotadas.
Sonham o futuro:
são mulheres nepalesas.
Do alto de um apartamento
na Avenida da Liberdade,
encharcados de vinho,
a burguesia lisboeta vomita:
— O problema do país são os imigrantes.
Nas mãos de Sushila, Danish,
Navid, Karki e Dolma o vermelho.
Será sangue?
Lesbos
Enquanto alguns
aproveitam as férias
no mar azul da Itália:
Camogli, Baia del Silenzio, Monterosso,
Ilha de Elba, Chiaia di Luna,
Costa Amalfitana e Spiaggia dei Frati,
mulheres e crianças, em longa espera, se desesperam
ao ver os corpos de outras tantas crianças
serem levados pelas correntes do Mar Adriático.
Se isto fosse um poema,
os leitores se lembrariam que Safo
também teve seu corpo levado
por estas mesmas correntes,
mas isto não é um poema,
e os corpos negros, migrantes e pobres
jamais serão lembrados.
Ser um refugiado é estar desapossado de si.
É ser um corpo esperançoso equilibrando-se sobre a morte.
Ser uma mulher refugiada em um campo de refugiados
é estar em delito.
É preferir dormir com fraldas
a ter de ir, à noite, à casa de banho.
De que servem os valores humanitários?
De que serve a poesia em Camp Moria?
A poesia de nada serve.
Nunca houve humanidade.
Foi por estar certa disto
que, há 2.600 anos, Safo
lançou-se do penhasco de Lêucade.
Os fragmentos de seus poemas sobreviveram à ruína.
Os imigrantes que vagam em botes
no mar Egeu desaparecerão,
pois não nos interessam as suas vidas,
nem as suas histórias.
Cinco mil e quinhentas pessoas
foram jogadas em Moria.
No campo, concentração de corpos:
sírios, iraquianos e paquistaneses.
Desconcertados.
Empilhados.
Lesbos tornara-se a ilha do desespero.
Coletes já não salvam.
A poesia de nada serve.
Recita Ro-La, uma jovem síria:
“A vida é um inferno em Camp Moria.”
Enquanto corpos são levados pelas correntes do Mar Adriático.
Enquanto Ro-La recita o verso da morte.
Enquanto Safo lança-se todos os dias do penhasco de Lêucade,
um turista de férias repete todas as manhãs:
“Che bello l’azzurro del mare italiano.”
Autoimolação
Friccionando o palito
de fósforo contra a caixa,
na cidade de Herat[1]
as mulheres, durante horas,
como quem ora,
passam as horas
olhando o lume.
Lá, onde a fala é interdita,
o corpo grita.
Os olhos reconstroem a trama.
Fogo. Fagulha. Flama.
“A língua é a espera de um possível.”
Seus olhos vazios
vagueiam pelo fogão a lenha,
vacilantes tropeçam na chama,
que volta como vespas
carcomendo a pele.
Todo gesto é risco.
As mulheres em Herat
afagam palitos com dedos firmes,
leves, lépidos,
como se dançassem à beira do abismo.
O fósforo quer saltar —
fugir da caixa —
mas elas,
com mãos exatas,
o retêm.
Silenciosas,
escutam o que arde dentro.
Ainda que interdita a fala,
no Oriente o corpo fala.
nos jogos de olhares,
no estalo do fósforo,
na curva da chama,
Uma atmosfera silenciosa
que irrompe as lógicas,
e desmantela estruturas,
por vezes não assimiláveis
em um mundo tomado por constantes ruídos
Na cidade de Herat,
a fome é certa
e o futuro é um animal cego
escondido atrás das paredes.
Ir à escola
é atravessar um campo minado
com livros nas mãos
e um túmulo à espreita.
A gasolina,
O fósforo em chama,
A carne humana assada:
Imagem desesperada do mundo.
Destruindo o lirismo da linguagem.
O fogo procura forma.
O poema é a carne das coisas.
Vórtice
Entre a dor e o desespero,
com o corpo em chamas,
elas resistem.
Se escrevessem versos
eles não seriam flores:
seriam lâminas.
A revolta —
é um pirilampo aceso no sangue,
um clarão breve
que ilumina o impossível.
A descoberta
Chegaram com suas naus e mastros.
Invadiram territórios,
mataram povos e
estupraram mulheres.
Disseram que nossos povos
eram infantis e incivilizados.
Com os Napë[2] descobrimos:
o mito é a civilização
[1] Herat é a terceira maior cidade do Afeganistão.
[2] Brancos em Yanomami

Elizabeth Olegario is a PhD candidate in Portuguese Studies, specializing in the History of the Book and Textual Criticism, at the Faculty of Social and Human Sciences of NOVA University Lisbon (NOVA FCSH). She is an integrated researcher at CHAM (Center for the Humanities) and a member of the group Information, Readings, and Forms of Writing (CHAM NOVA FCSH). She is also a member of the EU COST Action 18126 – Writing Urban Places, as well as a member of the group Education, Difference, and Subjectivity Production at the Federal University of Pelotas (UFPel) – Rio Grande do Sul, Brazil. Additionally, she is a member of the GIEIPC-IP – International Study Group on Colonial Periodical Press of the Portuguese Empire = IGSCP-PE – International Group for the Study of the Colonial Periodical Press of the Portuguese Empire.
She serves on the board of ABIC – the Portuguese Association of Research Fellows (2023–2025), and on the board of the Núcleo de Estudos Africanos e Lusófonos (NEAL – NOVA FCSH).
Elizabeth holds a degree in Portuguese Language and Literature from the Federal University of Rio Grande do Norte and a Master’s in Communication from the Federal University of Paraíba. In 2023, she was a visiting professor at the University of Siena (UNISi), at the Liceo Classico Statale GALILEO in Florence, and at the University of Cape Verde, Campus III – Santa Catarina. In 2024, she taught at the University of International Integration of the Afro-Brazilian Lusophony (UNILAB) – Campus dos Malês, in São Francisco do Conde, Bahia. In 2025, she gave lectures at the Federal University of Pelotas (UFPel), the Federal University of Rio Grande do Norte (DECOM/UFRN), and the Graduate Program in Public Health at the University of Brasília.
She is also a writer and literary critic who participated in the 8th and 9th Maputo Book Fair, and the 1st and 2nd Quelimane Book Fair, in Zambezia (Mozambique). Her texts have been published in the Portuguese cultural magazine Gerador, in the Portuguese edition of Le Monde Diplomatique, and in newspapers such as Saiba Mais (Natal/RN), Potiguar Notícias (Natal/RN), Tribuna do Norte (Natal/RN), Correio das Artes Literary Supplement (João Pessoa/Paraíba), and Jornal A União of Paraíba (João Pessoa, Paraíba).
