1. O FRAGMENTO CONTÍNUO DO FOGO

a casa aspirava o desespero. Mas não era isso. Era um refrão d’um fogo canibal nas vísceras do pensamento de um homem. De um pai, que julga que, o cinzeiro escuta-lhe os obscuros dizeres; e à poeta, as crianças estranham a dolorosa conversa: um sinistro silêncio sob uma sob uma escuridão voluntária, onde vislumbra-se apenas o iluminado crânio d’uma beata. E a insónia cresce uma polegada na cabeça até aos olhos, onde a noite bate fundo com o martelo da alucinação. E digo que a dor dos filhos é um gafanhoto na clorofila cerebral dos progenitores: lento e devorador

como a morte que pedala o corpo

como o trémulo medo do cônjuge se torne ante querido. Por tanto, debalde — diz a voz — que haja espaço no inferno, há tempos que o meu viver é um sôfrego requerimento.

In: O descalço [dos] Murmúrios, pág 21.

2. O BOLOR DA CASA

a casa acorda no polo mais vertiginoso do meu sonho

com as suas ramelas obscuras 

com os hematomas vivos no meu encéfalo 

e com o bolbo alucinado pela vida

a casa sonha chuva que morre na cobertura 

que silencia a sede dos campos herbívoros 

como a mãe, pelo vácuo elementar das mudas

fruteiras da casa

a noite morreu, na calefação negra da epiderme da inocência. O resto, é medo e

treva fria por cima

como o sofá sombrio do pai

eu digo que a casa é um casulo de infortúnios—

um celeiro de gritos,

de monólogos degenerativos como a dos móveis 

como a de enfermidades entre enfermidades

é com isso que:

— a dor argumenta lágrimas.

In: O descalço [dos] Murmúrios, pág 25

3. MORADIA: O SEU ESPETRO

sobre as mãos da casa

há uma colher muda a engolfar na língua da criança 

como a noite que se silencia nas imperceptíveis linhas que constelam o sono 

onde os cavalos carregam os rostos no seu galope nocturno

sobre a vegetação obscura e progenitora. De súbito, dos rostos: avança um

genocídio olhar para o campo que esmorece pais, pétalas, mães, dolorosamente:

como as facas líquidas que uma atmosfera chora

como o sangue que pedem os defuntos do poema

— Digo que há nestas faces, fechaduras consumidas pela escuridão

pelo impulso amargo do ermo imensurável num filho como a força das portas abrindo-se para outro dentro mais fundo

para a infância: essa variável que reconduz sempre o terror aos gráficos do sofrimento 

ao abissal atalhl da palavra 

e à hidrográfica ferida que alaga a insensibilidade humana.

por isso, a dor é um serrote quente no fígado. Que corta a umbilical agonia que une o útero da morafia ao cosmo d’uma alma

reinventando a luz nos negros polos d’um coração.

In: O descalço [dos] Murmúrios, pág 62

4.  

torrencialmente a solidão respira

sobre a obra que fragmenta o autor— desde a gota que calcula a tempestade do sangue até aos trôpegos soluços 

quando o verso se escasseia

no genocídio das linhas

que exterminam o pulmão: a gasosa criação que nos cerca.

Inédito 

Gibson João was born in Inharrime, in the Province of Inhambane — Mozambique; 24 years old. Winner of the 5th Edition of the Fernando Leite Couto Literary Prize with O descalço [dos] Murmúrios (2023) and of the José Luis Peixoto Literary Prize with em vogais (2024).