O auto-didata
E por não poder escrever, começou a pintar. Em primeiro lugar, desenhou a mão decepada a partir da mão inábil. Ele sabia que a direita era mais afilada, moldada à caneta. Espalmou a mão no papel e contornou-a com marcador, sem saber o que fazer ao pulso. Como fechar a mão? Não sabendo, escolheu deixá-la aberta.
Não conhecera a linguagem das cores, e os traços do mundo estavam até aí organizados na língua do alfabeto. Por isso ele abordava a folha ignorante de qualquer conceito – e não é isso ser livre? Aborreceu ao fim de um tempo ver os seus desenhos com formas repetidas. O redondo da face, o azul do céu, os caracóis das nuvens, o verde da relva; a linearidade e a mancha, o pequeno e o grande. Aprendera tudo isso sem o saber, do que os olhos foram sentindo.
Mais tarde se aperceberia de que a recta era também um adquirido. Por isso, os seus desenhos não prescindiam de formas rombas. Como saber se estão bem ou mal deste jeito? Não existe uma régua para desenhar curvas. Ele pintou assim por todo o Verão. Quando chegou o Outono, havia encontrado uma nova forma de chamar o sol.
Nos 101 do Mário Cesariny
Amoroso migo, eles querem saber-te escondido por aí
Nalgum recôndito (empoeirado) armário
Eu leio Ar, e com espaço Mário
Vejo-te no céu, no mar e rio.
Não têm manos e procuram cus
– sem anos foram sempre os teus
afinal o que importa: foram todos nus.
Toma este Cê como um laço: parabânus e adeus!
O infante ateu
O médico observa, o paciente sofre e o poeta escreve
Eu quis a terra toda à uma, e que o amor unisse, e jamais separasse
coisa alguma.
Posto que logo após me ter sangrado fiquei
reparado a olhar a branca e suja
espuma…
A blusa verde cansada cilha de rocinante mudou-se em caminhante,
Clareou, divagar-mente, até ao primeiro furo do cinto-mundo,
E viu-se andar em novas ilhas de repente
Entre chernes alheios e rémoras suas, lá veio à rede o céu profundo:
Quem me criou não me quis holandês mas do rotundo
Ao ar! em busca de outro final
Nem a santa cruz nem a cabeça d’ avestruz
E jamais o penhor de mim por outro igual…

João Freitas Mendes Born in Coruche to grandparents who could not read. Precocious child pays tribute to life. Has a good left foot, can sing, and expresses himself freely. He is myopic and sees many wrong things. He is left-wing and does not believe in gods, unless they are counted as men. Reads more than he writes, which earns him the prize of not being a writer of this century. Likes the countryside for strolling, and scoring goals. The rulers granted him – for the sake of future books – the supreme glory of being dismissed from the Faculty of Law of the University of Lisbon. There, he resisted for two years planting flowers in asphalt corrupted by violent mammoths and uses of time; he also taught at the University of London (Birkbeck College) and spent a season in the cathedral of Frankfurt, which he does not recommend. He published a book on the mistaken notion of justice held by Portuguese jurists and courts, and a book of poems. He has studied philosophy and literature, a practical interest in expansion. He will finish his PhD at the Vrije Universiteit Brussel. The second achievement of which he is most proud is having collected a debt from a policeman. He believes that the two best Portuguese writers to have emerged in the last 30 years are not recognized for their literary quality because they write newspaper columns.
