não estamos algures, vamos a caminho

Abril será sempre um mês de cores e aromas

de verde límpido, seguro e liso, de folhas complexas e simples.

num período breve, de cachos violetas das glicínias

em volúpia, antes da despedida

e o branco do jasmim, o laranja na altura das estrelícias

o fúcsia de uma flor exótica, luminosa, única –

em Abril, as rosas são múltiplas, e a tesoura decide.

separa uma e outra ainda, de pétalas mais livres

um vestido de alta-costura, invertido, frágil na cinta

mas perde a coragem nas de rosto mais escondido

tímidas, amigas do sol e do melro impaciente

atento ao silêncio dos felinos:

sobrevive –

mais acima, em Concílio, um debate mais fino

sobre a necessidade de acalmar os mares

não maltratar tanto a terra humana

dar início a um período de paz

um interregno:

– nos dilúvios químicos e invisíveis

– no declínio do homem público

– no egoísmo dos nacionalismos

– nas mortes inconsequentes, sem justiça

sem o avesso da pele, ao som do poder e do gatilho –

quanto a nós, 1+1 nesta sala azul

acima dos pés e abaixo dos cabelos

teremos sempre:

– a estrela de luz no centro dos miosótis

– as pequenas pétalas selvagens das margaridas

– as árvores inclinadas e os esquilos junto ao mar

– a ternura de uma carta antiga

– a imensidão no cruzar dos olhos, nos passos contínuos

no vivido e nas fotografias –

a norte, a sul, a este, a oeste desta sala

não podemos acreditar na cor branca dos colarinhos.

a história é turva, longe de ser digna, exige mão de artista.

e a condição humana é uma viagem, apenas no princípio –

mas não estamos algures, vamos a caminho.

teremos sempre mais ou menos inclinação, o oblíquo –

Abril e a imprecisão dos dias –

Sinnerman, a epiderme do mundo está inflamada

a elegância dos flamingos não anima os lagos do pensamento

nem os cisnes voam pelo azul blue sky de uma música de jazz.

a epiderme do mundo está inflamada

e em Dachau encontraram garfos, colheres e facas

por debaixo de torrões de terra:

uma arqueologia da dor de tantos corpos

e um coro enorme, silencioso e morto

só de sombras, sem nomes –

que os jardins se fechem e as flores não abram

estou triste esta noite, doce amor de sempre.

as magnólias perenes estão distantes

e o veludo das pétalas, tão ausente.

que as mãos sejam asas nesta melodia de silêncio

e inventem de novo formas e ângulos

em todos os lugares, não importa as distâncias.

que os olhos se fechem numa tela tão verdade

de pinheiros, caruma e cânticos de aves

na proximidade das brisas breves

de algas soltas e ventos salgados –

a um oceano de distância reconstruiu-se o Commodore:

a metamorfose, o Grand Hyatt, 1400 quartos

o que nada tem a ver com o hotel de Cohen

onde se falava de instantes de fama

de rostos imperfeitos e de memórias vivas

mesmo que se negasse no fim a ferida:

I remember you well, not so often –

na esquina da quinta avenida nasceu uma torre

100 milhões de dólares e uma parede kitsch

já ninguém se lembra dos cimentos da máfia

dos convidados, da matrícula da limousine

nem da náusea do engano na não transparência dos vidros:

talvez a rainha de Inglaterra compre um apartamento!

– marketing e o nascimento do perigo.

depressa demais é a condição neo

neo de liberal e néon de luzes do espetáculo, um palco aberto

falso como um gato persa ou uma caravela a descobrir um Novo Mundo

que não era a Índia.

uma ideia, um objetivo e a prática que se adquire:

uma mentira mil vezes repetida e a verdade torna-se líquida.

o luxo de uma torre e de um jardim suspenso pode não ser magia

uma ilusão apenas

a imagem de um tubarão num mar de peixes pequenos –

1a orquestra não pára de tocar.

existe a possibilidade de cairmos a pique.

será que existe um icebergue na órbita terreste?

agora as ruas de Nova Iorque falam dos mortos

e Bob Dylan lançou um novo disco

passou de novo o Titanic no TVcine.

a epiderme do mundo está inflamada

e ouve-se ainda Nina Simone –

estou triste esta noite, doce amor de sempre.

talvez os astronautas que há pouco partiram

estejam mais tranquilos

lá longe, entre as estrelas e um céu diferente

a ouvir Bowie e a olhar as escotilhas:

tanto azul

e flutua

Walden e a ilha de Cibeles

no móvel de madeira exótica

o perfume da jarra tricotada de cristal

refresca as ideias voláteis de uma tarde improvável:

temperaturas elevadas e o aroma da flor branca

sem nome, segura, soberba e notável

na sua elegância singular: o presente efémero

assumido, sem medo nem mal estar

como solidão bela

no silêncio da casa sossegada

quando o sol ainda alto –

respiras devagar, a instantes breves.

talvez um sonho de um campo aberto

caminhos sem asfalto, a possibilidade de pés descalços

relva fresca, a visão calma do mar, um canto de aves.

talvez um lago, um espelho verde de arbustos e árvores altas

a instantes, a instantes, a instantes breves.

talvez te lembres de Walden e de sentir a vida

longe do fog e de Nova Iorque, porque

a natureza não tem pressa

desvaloriza o alarme

contempla o sol e a lua como a única verdade –

no mais pequeno continente originário de Gondwala

ao lado da ilha de Cibeles

já não há lobos nem diabos da tasmânia

mas saltam ainda os cangurus de pernas fortes

braços pequenos e mãos delicadas

e os antílopes de risca branca e tonalidades várias

a dois metros

num ar triangular de esfinge

eriçando a coluna da atenção para o perigo:

uma questão de sobrevivência se a fogueira avança

se a Antártida derrete e se as praias sem surf

dispensarem contingências e contagens

desertas, enevoadas e solitárias

com barcas de muita gente, nas águas –

talvez a negritude dos eucaliptos e a fome dos Koalas

acendam a ideia antiga do equilíbrio das espécies –

o mundo anda desafinado enquanto respiras devagar.

o gato mexe as patas e no impulso imaginário

sobe o muro, observa a árvore, o ninho e o melro aflito.

não sai do sítio.

30 graus no relógio da farmácia.

um incêndio na serra: povoações ameaçadas.

qual a percentagem de dióxido de carbono sustentável

e as partes de oxigénio necessárias

para alimentar o sonho de tílias como frascos de essências

linces na Malcata, flores silvestres e águas claras?

no youtube e no Bluetooth

a música e a voz de Astrid, o saxofone de Getz.

a circunstância improvável de Carnegie Hall:

o ritmo da bossa nova nada teria a ver com a languidez do jazz

e Gilberto falava de uma galinha a tocar em teclas douradas.

a garota de Ipanema nunca soube do desastre na Amazónia

da indignação dos tratados.

nem Doralice podia adivinhar as mentiras de Estocolmo

as chuvas ácidas

a falácia dos diplomatas: promessas falsas –

enquanto respiras a instantes breves

a ciência sombria recupera o Carpe Diem

e de novo se calculam azimutes e se afina a pontaria.

abriram as fronteiras:

não sei se haverá sempre Paris

e em Veneza já não se recordam os cisnes –

é tão preciso o sonho e mais tempo entre as árvores

mais Leaves of Grass –

a dor de uma única semente pode condenar mil almas –

José Manuel Ferreira (Porto, Portugal, 1957) holds a degree in Communication Sciences from the Lusófona University of Porto and a master’s degree in the same field from the Faculty of Arts of the University of Porto.
He found in poetry a privileged space for listening and revelation—a path that deepened significantly from 2008 onward, under the guidance of the poet Ana Luísa Amaral.
He is co-author of the children’s poetry book Doses de Magia (in collaboration with Ana Luísa Amaral, Raquel Patriarca, and Joana Espain) and author of an extensive poetic body of work, still largely undisclosed to the public.
His poetic writing draws foundational references from Camões, Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, Cesariny, Almada Negreiros, Ana Luísa Amaral, Pablo Neruda, and Paul Éluard, among others.
In each poem, he seeks to build a balanced sequence of musical, visual, historical, or mythical elements, guiding the reader, verse by verse, through a scene in motion.
He currently lives in Porto.