de “Calendário das Dificuldades Diárias” – (1ª edição: &etc, Setembro 2002, Lisboa)
A morte (antes, medir os fios de Marte, recompor)
escondeu-se comigo numa pequena parte da minha
barriga, não me larga, alastra, enche-me, tu carregas-me,
eu vou em silêncio. Enche-me, alastra, tu carregas-me
numa pequena parte. Alastra a morte, comigo, enche-me.
Eu vou em silêncio, numa pequena parte da minha
barriga. A morte alastra, eu vou em silêncio, numa
pequena parte, da minha barriga. A minha barriga não
me larga. Esse pequeno segredo é poesia.
,
Desço no jet
as janelas tremem, a medida do ar
é a miligrana, é a miligrana
que o meu pulmão disputa
descendo àquela velocidade
despedaçando-se como um dedo na terra
vazio.
,
Um limo serve para enforcar um pescoço como o teu,
meu amor, as papoilas ao lado da nossa cama vão dar
fruto e tu ainda vais no sexto mês, um fio de lã serve
para enforcar a minha filha, meu amor, desenhar os
mais lindos sacos cor de rosa para as meninas
que nascem mortas, lembra-me quando for o dia
da tua morte, eu saio à mesma hora, apanho o mesmo
táxi, o mesmo trânsito, demoro tempo demais, entro a
sangrar e morro antes de te ver, será que o homem
que eu mato nos meus sonhos és tu? a minha
preocupação são as pistas que me podem incriminar,
nos meus sonhos eu empurro um homem para um ralo,
na minha memória eu empurro-te para dentro de um ventre
sem ar e firmo o braço na tua cabeça até parares
de dar às mãos e aos pés e que o médico te tire
e enterre e se me vierem perguntar eu digo que foi ele
que te matou porque senão as pistas nos meus sonhos
viram-se contra mim, não sabias falar porque
sempre que tentavas fechavas os olhos
era por isso que não conseguias
– morreu, a minha filha morreu.
– a sério?
,
Eu, estaca zero vírgula muito pouco – grafito
,
Deus, dá-me um beijinho na cabeça, depressa, que as minhas
condições iniciais baixaram – grafito
,
Choveu tanto nesta noite, choveu tanto em cima da
nossa árvore que a árvore caiu para cima de outra,
está lá agora agarrada, mete bombeiros, serras
elétricas alimentadas pelo isqueiro do carro
de bombeiros, mete um chão lindo coberto de
folhas amarelas e folhas castanhas e uma branca.
Vai lá. Vai ver. Eu não tenho mais as estúpidas
condições de olhar o futuro, mesmo que neste
guardanapo esteja escrito bom apetite.
Vai ver a árvore. Vão cortá-la.
,
A minha filha nasceu com uma perna partida, os
pés partidos, os dois joelhos desfeitos, com as coxas
cortadas e cinzentas, com a barriga e o sexo deitados
abaixo, com o peito cortado e branco, com uma cara
de quem já morreu há não sei quantos jantares dos
meus, dias dos meus, com dois braços, dois braços
é uma frase. E morta acaba por ser uma frase. Quer
que abra o caixão, quer dar um último olhar? Um
último olhar para quê, não está lá nada a mais
do que eu já disse. Eu não me despeço de dois braços
com uma cara morta há meses.
,
Será que ainda vou andar nas cavalitas de alguém? –
grafito
,
Seringa, bomba, supositórios, comprimidos, xarope,
com o ar, com os brancos das luzes dos hospitais, das
clínicas, das urgências, brancos que vão largando pontos
amarelos, colorindo o branco, misturando-se.
O amarelo é a cor mais suja. Há hospitais que são
castanhos por dentro, há muitas paredes pintadas
de castanho até meio. O amarelo estraga as cores
dos hospitais. O amarelo estraga o castanho dos
centros de enfermagem. O amarelo corrói as lâminas
e algum ar se perdia enquanto a pele se recompunha.
,
Não me lembro se alguém esperou comigo
que me trouxessem pela primeira vez na vida
o meu filho, peguei-lhe ao colo e naquele
pequeno quadro eu era toda a parte de cima
e ele toda a parte de baixo, eu não conseguia
tirar os olhos da cara dele, não me lembro se
havia mais alguém, – posso ver os pés?
– quer contar os dedinhos?
– eu adoro pés, só isso.
– os pés do menino.

Nuno Moura (Lisbon, 1970) is a poet, editor, and professional reciter. He began publishing in 1993. In 1997, he was awarded a literary creation grant from the Ministry of Culture. The following year, together with Helena Vieira, he founded the publishing house Mariposa Azual. He is currently the editor of Mia Soave and Douda Correria. He is a member of the collectives O COPO, Ventilan, Os Bambi, and Batatas Parvas. He organizes music and poetry events. His most recent book is entitled Cavalo Alucinado (“Hallucinated Horse”), after the poem by Ângelo de Lima.
