Repensar

repensar o amor. Elevar até aos morros a doçura da palavra num monólogo de esperança

elevar o tam-tam que faz estremecer o mais puro das entranhas

açude de todos os rios que convergem para o mar

repensar o sonho. A estria transversal que acalenta a jornada

de nossos magoados pés em nosso chão de basalto e lama

vermelhidão de outrora em sangues humilhados

em tufos de verdura que emolduraram nossos rostos

nossos cativos rostos

repensar o obô fonte de nossa língua primeva

bem aventurança de nosso espólio repartido em doces murmúrios:

suim-suim… curucuco… txintxintxollo… cacafonias aleatórias de frágeis criaturas a lavar no Água Grande

repensar a vida. Esfera armilar a espargir memórias. A dança peregrina do falcão

névoa dos campos em redor

trilhos suados de reminiscências e lendas quando a ilha era tortura e repressão

abençoado chão onde crescem majestosas palmeiras de leque

em canções de embalo

a chuva a lacrimejar por sobre as flores do sape-sape

repensar a hora.  Clepsidra e ampulheta do tempo

no éden onde se divide o norte e o sul

no éden onde aromas se entrelaçam e brincam em nossas peles sedentas

a sua dança coreografada de lendas. Nosso estigma de cor no alcance do horizonte

nosso emblemático escudo na defesa das manhãs onde o espírito se estira e canta

onde árvores frondosas e altivas atravessam a noite

com cabelos de angústia e esperam como torre de vigia

o repouso de todas as aves

repensar a esperança. Nebulosas a disseminar estrelas

a ditar leis que percorrem nossos sonhos

silenciosos sonhos como caminhos do mato onde se dissiparam gritos e dores

e onde minha longe avó pisou andim

  in “KILÊLÊ A Dança Sagrada do Falcão”.

Rosa de Porcelana Editora – 2021

ANCESTRALIDADE Pagá devê

O tempo parou na esquina do meu corpo

contornou as imagens retidas no espelho. Afinal o mar

estava ali a espaços de mim. Em cada onda

pressentia o espraiar da infância

o deslizar do aroma

gotejar de ferida aberta à invasão dos sentidos. Onde

estava eu a reinventar o tempo? Do outro lado da muralha

o vento despenteia imagens que guardei na canoa

das minhas vidas. Ele sabe que o regresso

já não é palavra adiada no desfolhar do livro da utopia

agora o tempo é escasso para o reencontro

as horas adormecidas ao compasso das ondas

volteiam e reacendem

a minha ancestralidade. Estendem-se mar adentro

e trazem-me o eco da voz que eu tinha apenas

adormecida no peito

Voltei… pagá devê…

in “Água Crioula” – 2007

XVIII

as mãos de minha avó eram puras

puras como as neves de Kilimanjaro

puras como sua virgindade escondida em leito seguro

puras vieram na embarcação que a fez aportar em sombrio escaler

o contrato as tingiu de negro ébano

o contrato as moldou em concha tal como moldou seu corpo

o contrato as esconjurou de sua pureza endémica

rudes plantações, negro cacau, negro café

grão a grão torrado e moído e remexido por suas mãos

que para mim foram sempre puras

como as neves eternas de Kilimanjaro

in “Kilêlê, A Dança Sagrada do Falcão– 2021 – Rosa de Porcelana Editora

FRAGILIDADES

rodeias meu corpo na cintura do fogo que tua mão alcança

ponto final de um encontro mesclado de sorrisos. Mestiçagem de afagos

e instantes e refúgios

como quem se aconchega em noites frescas de gravana

saciamos nossa ancestral sede de partilha

na lagoa de meu sexo constróis tua jangada e partes

é diminuta a ilha e o regresso é o ponto cardeal do nosso chão

cinges teu estuário à foz de meus sentidos

recados antigos de uma outra existência

e o tempo se escoa por meandros que não conhecemos

era Sam Liba que nos falava do tempo (lembras?)

de sua cadência em espiral no fumo de seu jéssu

seu sofrimento a sul, em Porto Alegre

longas nossas noites em tão diminutos quartos de lua sempre minguante

só tu eras o sol e eras o tempo e o instante e o minuto e a hora

in “À Sombra do Oká” – 2012 – Prémio Litº Francisco José Tenreiro – Ediçoes Esgotadas -Port, e Editora Escrituras – SP (Brasil) – Faz parte do PNL (Plano Nacional de Leitura por um período de 10 anos)

A Caminho da Roça

Lá vai minha mãe de quali à cabeça

A caminho da roça

Lá vai minha negra suspensa no espólio de um prazer já extinto

nas veredas sem fim

transporta a corrente do viço perene

e embala sozinha as aves da mata

na sua face tisnada pelo sol do equador

atravessa um sorriso de ave migradora e timidamente

por entre ramos de solano seu quali aparece rasgado de esperanças

fantasma de fumo diluindo-se ao longe…

Lá vai minha mãe subindo e descendo o okê de Belém

seu ventre estremece na lonjura dos passos

sentidos no peito a estalar de ansiedade e em suas mãos ternurentas

desenha-se sempre o estreito caminho que vai da Grota a Molembu

in “Aromas de Cajamanga”

À SOMBRA DO OKÁ

à sombra do oká repousarão meus dias atados em silêncio e em penumbra

será ali minha última casa, meu pássaro de fogo ancorado em meus límpidos ossos

dispersos ossos ao redor do coração do teu tronco

como algas que pernoitam em areais pardacentos

ali romperá a seda das manhãs dos muros brancos das casas de Guadalupe

como roupa de lavadeira nas margens do Iô Grande

e o lento fluir das horas dissipará o odor da noite em meu regaço

meu caule de fiá malixia, minha folha de malimboque

não haverá mais sombras nos meus sonhos

o velho oká há-de proteger minhas estradas com seu manto

de verde

e rosa púrpura

ali ninguém mais se atreverá a negar-me o chão

a negar-me a mátria, o húmus materno doce e quente

e quente e húmido

o catre onde sempre estirei meu poema e minha mágoa

e minha sede

ficarei em paz à sombra do oká

na claridade dos campos de capim e lemba-lemba

campos que minha avó plantou e capinou e colheu e repartiu

Cestas e cestas de goiaba

Grumixama

Pitanga

Salambá

nas margens desses campos hão-de pernoitar as aves

e na sua contradança guiarão meus versos até à varanda do tempo

minha varanda de luz inclinada nos coqueirais de Porto Alegre

minha varanda onde ressoam como embalo de criança  meus

passos primevos

minhas histórias vividas entre Batepá e Guadalupe e Molembu

e Uba Flor

meu derriço de quimeras escondidas no xaile materno

apagadas que foram em lareiras de roble e verde pinho

in “À Sombra do Oká” – 2012 – Prémio Litº Francisco José Tenreiro – Ediçoes Esgotadas -Port, e Editora Escrituras – SP (Brasil) – Faz parte do PNL (Plano Nacional de Leitura por um período de 10 anos)

Olinda Beja, teacher, writer, poet, narrator, and storyteller, was born in Guadalupe, São Tomé and Príncipe, to a Santomean mother and a Portuguese father. Still a child, she was sent to Portugal, where she currently resides. But one day, she decided to return to her country of origin, and from then on she undertook her search for lost time.

She holds a degree in Modern Languages and Literatures (Portuguese/French) from the University of Porto, and in African Literatures from the Open University. She is also certified by the Alliance Française in Hautes Études Françaises Modernes (Coimbra/Paris), and has pursued higher-level cultural training in Switzerland.

A secondary school teacher from 1976 to 2005 in Portugal, she later taught Portuguese and Lusophone Language and Culture in Switzerland at various colleges and at the University of Fribourg from 2005 to 2015. While in Switzerland, she also promoted cultural initiatives about the islands where she was born, organizing with her students collections of educational and cultural materials for the children of São Tomé and Príncipe.

She travels the world giving lectures, telling stories, and performing poetry, engraving in the minds of her audiences the name of São Tomé and Príncipe. Through her works, thousands of people have virtually visited the islands. In this way, she promotes Portuguese and Lusophone language and culture.

Olinda Beja has a vast body of published work (25 books, 22 of which are dedicated to the island and people of São Tomé and Príncipe—plus two forthcoming children’s books in Portuguese/Santomense). In addition to writing and promoting the Portuguese language around the world, her stories and poems are also “embellished” with her mother tongue, Santomean Creole, to clearly show that this Creole (Forro) has more than fifty percent of its roots in Portuguese.

Her works have been studied by teachers and students in various secondary schools and universities, notably in Brazil, England, Germany, Hungary, France, South Africa, Russia, Argentina, Angola, Morocco, the United States, Switzerland, Cape Verde, and Luxembourg. She has short stories, poems, and a novel translated into various languages (Spanish, French, English, German, Italian, Mandarin, Japanese, Russian, Arabic, Greek, Hungarian, and Esperanto).

She has received multiple literary prizes, honors, and tributes. In 2020, she was awarded the Lusophony Prize for Literature for her work that spans genres such as poetry, short stories, novels, and children’s literature, and for the way she portrays the experience between Africa and Europe, standing out as a cultural ambassador of Lusophony.

Her books ‘À Sombra do Oká’ (poetry) and ‘Um Grão de Café’ (children’s) are included in Portugal’s National Reading Plan – Ler+.

In November 2023, two prominent theater directors—Graeme Pulleyn (British) and Márcio Meirelles (Brazilian)—staged the play “Esse Caminho Longe” (That Distant Path), based on her life between two continents. It premiered on November 4 in Viseu, where it remained for six more days with daily school performances. It was then shown in various other Portuguese cities, culminating in a grand performance in Lisbon, at the UCCLA (Union of Portuguese-Speaking Capital Cities).

In 2024, the play toured São Tomé and Príncipe, Portugal (in several cities with school sessions), and Brazil, where six impactful performances took place in the city of Salvador (Bahia).