Óscar Fanheiro

MORTE

À mana (Zai)Tuna

A morte queima os olhos feitos de sal; domestica a dor que rema paciente a ferida que não se apaga. O silêncio chupa a sombra do choro nos condões acesos da angústia, como se a renovar o primeiro pecado após o santo baptismo; as flores carregam o peso da dor, o cheiro podre que os dias exalam e as horas pesam na balança das mãos. Dói essa sinfonia de morrer aos bocados, esse ritual de doar uma partícula de nós mesmos ao colo do abismo a cada vez que o luto nos abraça. Mas, é mais triste provar o próprio medo; mascar grão-a-grão o ódio que se tem da morte.

OS ANOS

Para António Baulene Júnior, Clinton Magos e Armando Mazoiu

Os anos. Estes becos incansáveis da arte de viver. (Eu) meço-me no cálcio da sombra, a régua mede o tédio pelo calor do silêncio, assim como a boca mede a saudade pelo peso da saliva na língua. A sombra lambe o frio da angústia na fuligem das acácias, esconde nos seus umbrais o pólen do medo. Pinto os meus ouvidos com esta voz nocturna cheia de silêncios, esta Siréna luz que cai na goela da escuridão e desfia-se ao longo da distância dos teus cabelos, como a árvore que agoniza toda sua extensão sentimental no abajur da madrugada e amamenta a fruta que cai à mesa ao meio dia. Os anos, meu rapaz… espreguiçam os sonhos, vendam os nossos olhos de incertezas e ofuscam o fémur das ondas no quadril do pôr-do-sol. Querias tu vestir o manto da inocência, acreditar no fracasso dos Homens e esquecer o poder da palavra? Ou Querias sentar-te à orla das manhãs e vigiar as utopias dos dias, como um guerreiro que saca da espada a sua melhor oração.

Os anos!

CALENDÁRIO DE AUSÊNCIAS

Agora porque acordo deste pesadelo, que é o peso das mãos, recordo a minha irmã como se fosse ontem. E sinto que passou-se muito tempo e eu não envelheci nada. Olhem, na terça lembrei do bilhete que a minha amada escreveu-me há anos, lembrei-me do táxi amarelo em frente ao Shopping 24, do beijo e de como ela estava colorida por dentro. Lembrei-me, ainda, do chapéu do nosso amado clube e que agora desfila por entre o esquecimento no meu quarto; lembrei-me do voo para Nampula, logo após ao demorado abraço de nossos lábios, porque ela tinha de voltar àquelas terras para terminar uma formação, e que as chamadas só eram mais gostosas às zero porque o amor não tarda, e já que é sábado, vem a saudade alvejar o corpo. Ontem uma ex ligou-me para falar do passado e reaver as flores. Mas já era muito tarde para uma noite de núpcias, porque o palco fecha às quinze, e na redacção pediram-me que despachasse o noticiário, que o presidente ia falar às vinte. Então me lembrei mais uma vez da amada, e do nosso aniversário em Abril, porque a lua se faz cheia, e os anjos saíram para brincar… E porque só agora me lembrei da minha irmã, preparo-me para a morte como quem atira as lágrimas ao fogo, na espera de uma explosão…, que a vida aqui está uma selva. ‘Pera aí! Outro dia falava com um amigo, e ele dizia estar sem voz, porque o corpo perdeu o seu fôlego, e que a sombra se amontoava sobre a crista de sua barba e não era p´ra eu chorar, pois Deus também chorava, e eu o desmenti. Agora passado este inverno de fogos e insónias, relembro do vestuário da minha irmã, como quem dá o poema por vencido, pois o meu quarto asfixiou-se de tantos cabides vazios. E nada volta p’ra trás nesta vida, nem a lágrima, nem o sorriso, e nem o sangue sobre a trama deste calendário de ausências.

INSTRUÇÕES PARA UM INCÊNDIO

À mana, Zai(Tuna) M. Fanheiro

A noite inicia-se com este ciclo de fogos. O lume destas mãos com que te reacendo a memória deste poema, como quem chama pelas cinzas. Essas águas em que se chama por um nome; e um nome por outro nome como se se derramasse as estrelas sobre o Vénus dos espelhos em sua voz. E espera-se que os versos rebrilhassem neste cordão de palavras onde se desalinham os ventos, e com o vento as nuvens, e esse tremor de feridas em que se aprumam as sombras de nossos pecados sobre o sangue em que se ergue a nossa cruz; digo, amar o verbo como se fosse a ti mesmo, nesta oração em que te revejo sob a grande teia da infância e o seu grifo de sonhos e sorrisos em que estacionamos o Sol deste nevoeiro de árvores e chuvas, desde a entonação da insónia ao silêncio dessa pedra em que o coração se quebra.

SALMOS

Quero a morte com um bocado mais de compromisso, um bocado mais de paz; e um pouco mais grave, os dias enxutos a escandir a voz dos espelhos nas silhuetas do sono, o desértico viaduto de que se abruma o profético acervo desse vasto silêncio em que Oramos em penitência ou, por outra, a inquietude líquida desse cansaço que se eleva as costas das noites em que dormimos as penas aéreas de nossos pecados. Agora, chegada a hora do desespero, relembramos do testamento os sorrisos da infância, a baia dos apaixonados onde estacionamos há muito tempo as palavras nebulosas desse poema madrugador e insular, pois aflora-nos agora a frenesi dos rostos insepultos, a febre, a lepra sexual desses semideuses em crise, e então, nus, coramos em nosso túmulo os salmos da velha angústia, e por que não o destroço umbilical de que proviemos?; (…), pois conhecesse Deus o fim dos poetas, levava ele a verdade ao altar ao invés de deixar com que se amadureçam os oníricos frustos desse pandemónio religioso em que se fecha a luz da palavra, do amor e dos sonhos.

Óscar Fanheiro was born in the city of Maputo in 1995. A poet and prose writer, some of his works have been translated into English and Catalan. He is the author of Incêndios à Margem do Sono (Fundação Fernando Leite Couto, 2023).

He was finalist for the Ulysses Literature Prize – 2025, with the book a casa em seu deserto (unpublished); finalist for the Ulysses Literature Prize – 2024, with the book A Revolta da Árvores (unpublished); winner of the Fundação Fernando Leite Couto Literary Prize – 2023, with the work Incêndios à Margem do Sono; honorable mention at the Reinaldo Ferreira Literary Prize – 2022, with the book O Manual Do Silêncio e Outros Mistérios (forthcoming); finalist for the UCCLA Literary Prize – 2018, with the book A Gramática da Solidão (unpublished); and finalist for the Fim do Caminho Literary Prize – 2016.

Contact: oscarffanheiro@gmail.com.