Rita Pitschieller Pupo

5 poemas do livro

‘ATIRAR UM OSSO À ESPERA’

Edições Húmus, 2024

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Uma história de crianças lida em voz alta

para desempoeirar a pergunta

quem sabe, um encontro

a ter numa imagem às cegas

um divã no centro do humano

onde o observar em toda a sua potência

devaneio: a simplicidade ainda pode

ser a virtude filosófica maior

nada para solo de criação em arco e lira

e uma escuta oblíqua da exuberância das aves

há uma beleza levantada do chão

à passagem de uma manada de búfalos

como um decantador de sonhos a segurar as tempestades

a melancolia tem e não tem notas de desencanto

concordo com Agnès Varda

se abrissemos as pessoas, encontraríamos paisagens.

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Vê como organizo os meus astros em torno

do inestimável e uma certa perplexidade diante

das comuns funções das coisas. como dizer

a manhã estendeu-se sem escamotear entoações

para assimilar um compêndio da respiração

gerúndios apenas e ramificações de azul

procuro um declive onde erguer

um copo a Magritte. la lune. la neige. le plafond

e anoto a invisível observação: um combóio avança

algures para lá do muro e passando o nível

desperta uma latência no poema.

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Atirar um osso à espera

Está tudo aqui à disposição

dias torrente de tom prosaico e uma

precisão articulatória de fandango

entradas curtas para um alvoroço

que mimetiza uma aproximação à espera

os poemas, pergunto, são feitos de quê?

manuseio da linha sobre a desordem das coisas

enormes vozes de alto mar entre sebes

de marfim. nada cede a não ser o escárnio

endémico de uma açoteia interdita

evidências pouco atreitas à fome e uma pedra

que medita o desejo a anos luz

para quando o fruto deste silêncio?

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Escreves a manhã como quem canta

para impressionar os pardais

uma fuga em espístolas esquadrinhada

à chuva. da travessia repáras

no quanto a vida afectiva bebe

da gestação das plantas

de uma plumagem límpida

pronta a reverberar o timbre mudo

florir o instante.

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Chamemos-lhe o diário de uma casa

no mundo. palavras em aberto, qualquer coisa

aproximada a uma ária barroca na tentativa

de segurar os pulmões a tiracolo. pondero as florações

suspensas e bebo do tanto que se pode em

existência remota

transpor este dia todos os dias é isolar

da brisa uma penugem totalmente coberta

de miudezas e espuma. duas ou três passadas

ao abrigo de uma eminência limpa

traduzir tudo isto pede porém uma

generosa queda para a deambulação. mezinhas

com que desviar a dor do curso natural

atrelando-a por arrasto a uma mosca que insiste

na transparência da passagem

às vezes o corpo aproxima-se do chão

encontra um amparo, um gato, uma sílaba

com que ligar as divergências da matéria

dedilhar as cores primárias de um milagre

na esperança de o comover.

RITA PITSCHIELLER PUPO. Born in Lisbon in 1981. Writer, poet, and Co-Director of the Center for Psychoanalytic Creation, where she is dedicated to the study, training, and development of activities around the interarts dialogue with Psychoanalysis. She has published two poetry books: Peixe Voador (Editora Labirinto, 2022) and Atirar um Osso à Espera (Edições Húmus, 2024). Her poems have been published in several literary magazines in Portugal, Catalonia, and Brazil. She holds a degree in Communication Sciences from NOVA FCSH and studied actor training at the Lisbon Theatre and Film School.