*Cavalo Selvagem
Minha cabeça é um campo aberto
e nela
um cavalo selvagem disparado.
Tento segurar as rédeas, mas as mãos fraquejam.
O sol bate forte entre os olhos,
as têmporas ardem feito brasa.
No pensamento uma traição,
um ato perverso, um doido e sua ilusão.
Ponho um pano frio sobre a testa,
minha avó dizia: “essa dor passa.”
Mas não passa, só galopa mais longe,
esmagando as horas, pisoteando a calma.
A casa toda dói comigo,
a música do vizinho grita dentro dos crânios,
até o grilo, coitado, parece um martelo.
Respiro fundo, espero,
sei que sou feita pra mais que essa dor,
mas hoje ela me fez de pasto.
*Finitude
Aqui me encontro
inequívoca e descontente.
Ninguém me socorra.
Sempre por um fio,
morro todo dia
de idade avançada.
Impura, profana.
A certeza, única
afinal,
sou incompletamente finita.
*Lição
Há dias em que o mundo se desenrola
como um novelo esquecido na sala,
os fios confusos, presos nos pés da mesa,
e a gente tenta desenredar sem cortar.
Minha avó dizia:
“desate com paciência, ouça o fio.”
Eu, apressada, puxava tudo,
e o nó ria de mim, gordo de teimosia.
Hoje, ao cozinhar feijão,
ouço minha avó na água que ferve:
“tem que esperar o cheiro subir.”
E lembro do novelo.
A lição é lenta,
um degrau de cada vez,
como rezar Pai Nosso devagar,
sentindo cada palavra
segurar a alma nas mãos.
A vida ensina, mas não explica,
como quem dá um livro e diz:
“leia.”
E a gente lê com as mãos tremendo,
e grifa com o coração.
Ainda há nós que não desfiz.
Mas aprendi que, às vezes,
é o nó que segura o mundo no lugar.
*Fim de nada
Hoje a casa acordou mais leve,
um silêncio que dança nas paredes,
como se o tempo, num gesto tímido,
tivesse parado pra acender as velas.
Os retratos sorriem na estante,
e o sol entra sem pedir licença,
toca os móveis, toca a gente,
num abraço que só o dia de hoje entende.
Há bolo, há flores, há esperança.
Mas o mais bonito é o segredo:
é que o tempo, nesse dia,
não pesa, só passa macio,
como dedos folheando um livro antigo.
O mundo lá fora segue correndo,
mas aqui dentro, neste instante,
cada ruga é um mapa, cada sorriso, um verso,
e cada abraço, um laço que o tempo não desfaz.
Parabéns não é só uma palavra,
é um eco que vem de longe,
é um canto simples e sincero
que diz: você é parte disso tudo.
E quando a última vela se apagar,
não será o fim de nada,
apenas o início de mais um capítulo
no livro que o coração escreve.
*A Carne do Medo
No silêncio impiedoso
onde o ar corta como lâmina cega,
desenha-se um vulto sem coragem,
um corpo dobrado sobre si mesmo,
moído pelo peso das sombras,
esculpido na matéria da fuga.
Seu olhar, fugaz e traiçoeiro,
reflete o pavor de um grito abortado;
cada palavra é uma rendição sem luta,
cada passo, um pedido de clemência
na língua da covardia.
Nessa existência cortante,
o covarde apodrece entre as horas,
limitado ao pó de sua renúncia.
Não há sangue que corra em suas veias,
apenas a carne do medo, pulsante e inclemente,
trêmula como um bicho caseiro sem dono,
ferida exposta que jamais se cura.
E quando o tempo toma o último resquício,
quando a noite lhe lambe os ossos,
ele finalmente se desfaz
não com um rugido, não como um trovão,
mas com um sussurro que ninguém escuta,
nem o diabo: que não quer lhe carregar.

Simone Bacelar was born in Salvador, Bahia, Brazil. A journalist and Doctor of Communication, she worked in newsrooms and cultural projects before embracing poetry as a territory of confrontation. Her writing is raw, acidic, uncompromising—poetry that asks no permission and offers no consolation.
Her first poetry book, to be released in the second half of 2025, is an invitation to discomfort: verses that bite, burn, and keep speaking long after the last page.
