Catarina Santiago Costa

VIDA HIGIÉNICA

As videiras invadiam as moradias do meu bairro

transformando-as em casas de duendes

ou de quaisquer criaturas de uma floresta mágica.

De vez em quando aparavam-nas,

descobrindo a arquitectura que a natureza escondia.

Na primavera regressavam,

arrefecendo-as do calor do estio.

Ficavam mais bonitas vestidas,

ao contrário de nós, que somos mais bonitos nus,

desengane-se quem pensa

que o tempo é o precipício tremendo

– as barrigas dilatadas, a pele pendente,

as mamas e os testículos desmaiados

tão belos e honestos quanto os firmes.

Em nós, até uma folha de parra é excessiva.

Ter-nos-ão sempre dito o que é a beleza?

Tornei-me sequela da sequela,

terapêuticas inúteis para o toucador

que não tolera espelho algum,

torrentes de pensamentos atrás de pensamentos

todas resultantes de pensamentos atrás de pensamentos

numa centrifugadora irrefreável.

Analfabeta e cega num mundo de luz branca,

quero reorganizar a cronologia de tudo isto.

Porque as coisas só mudam de verdade

quando um omnívoro que parimos

nos trespassa com o olhar ao qual,

por mais que nos cubramos,

não conseguimos esconder nada.

Para esses olhos, somos mais transparentes do que água,

transparentes com os artifícios em evidência

– as putas das folhas de parra.

A vergonha é um parasita, há que matá-la,

tornar-se o pedinte da Baixa

que desgosta os turistas e nebuliza

um aroma a terceiro mundo

quando expõe as chagas aos transeuntes,

habilitar-se à esmola para perceber

que nem tudo está perdido,

recordar o riso na conversa com um camarada mendigo

– foi nesse cara-a-cara de testas lisas,

nesse intervalo bendito que o dador investiu

(dinheiro bem gasto, feitas as contas).

Eia, botânica do entulho

cuecas nos estendais

pardais que debicam nas mesas das esplanadas

pombos nas gares e nos metropolitanos

e alegrias urbanas quejandas

– se valem muito ou pouco,

deixo-o ao vosso critério.

Pela parte que me toca,

não passeio em todas as ruas,

nem todas são minhas amigas

– as dos antigos amores,

por exemplo,

tornaram-se insuportáveis.

Perdi todas as famílias, abandonei o rio

– deixei de confessar-lhe mesquinhezes e incompetências

para me devolver uma qualquer penitência.

Fazer confissões ao rio e cumprir penitência

salva-nos, mas polui-o – melhor deixá-lo.

Não passeio em todas as ruas,

nem todas são frequentáveis

– as dos antigos amores, por exemplo,

são fétidas.

Não me predisponho a fazer sashimi,

origami, cerâmica nem um quintal de onde

colher alimentos bons com a consciência limpa

– lavem os governos e demais usurpadores do futuro

a merda que fizeram com a energia fóssil, a nuclear

mais o fomento ao consumo.

O meu tempo não é o de hoje nem o de amanhã,

o meu tempo é estúpido, ensimesmado,

um miúdo de cinco anos num corpo quadragenário,

os meus interesses são analógicos,

os termómetros, de mercúrio;

as balanças têm pesos e fiel;

dou corda aos relógios

– o de parede tem um cuco.

Falam-me de vazio quando o que há é torpor;

não há vazio, há uma fome insaciável de consolo;

não há vazio, há a abundância que incha o estômago,

que nos ata à secretária,

que nos cola as línguas aos ecrãs e às vitrinas

– lambemos tudo o que esteja atrás de um vidro.

Não há vazio, há consumo

– riam-se de nós os que não têm nada. 

Não há vazio, há sede e esgotamento,

vidas que não rendem, tempo que não estende,

produção de sobra e que ainda por cima não rende.

Oxalá o vazio.

Esvaziamento é perscrutarem-me,

mas virarem a cara ao vendedor de pensos rápidos

dos transportes públicos quando

um olhar de reconhecimento

e as palavras «não, obrigado»

bastam.

Esvaziamento é fitar o horizonte

em vez de correr para ele com lágrimas de alegria

bradando «és sublime, infinito».

Esvaziamento é a morte do amor,

a obliteração

e terror absoluto o sítio para onde

ninguém deveria ser capaz de olhar:

o sofrimento dos filhos.

Sou sacerdotisa da divindade de mim saída.

Não fala através de oráculos ou messias,

é uma sílfide, uma blimunda.

Mas prestar-lhe culto não pode ser tudo

ou deixarei de ter o que lhe oferecer.

O culto da maternidade implica saber parar,

escutar, viajar e conversar com mulheres

que fumam charutos em Havana ou na Birmânia,

ver onde se funda a humanidade, onde se implanta,

partilhar tudo isto com as crianças.

Mas que isto não sirva de pretexto

para me amardes sem inscrição.

Estou e sou concreta,

carnuda, musculada,

mapeada a marcas de guerra,

um globo terrestre,

Reia, Aquiles, colosso,

mulher-homem,

síntese do sublime e da porcaria,

embebida de eficácia.

Prestais-me um culto de Nossa Senhora,

insistis confinar-me a uma moldura quando

moldura alguma comporta tanta massa,

tanta vida ou palavra.

Quereis-me um ícone, mas não caibo num nicho,

nenhuma das minhas conceições foi imaculada.

Não sou uma mater dolorosa,

sou besta de carga

– só me falta força para me carregar a mim.

Não me perderei por vós

se insistirdes em ver-me assim.

Deus (que posso ser eu)

não ama quem não se cumpre

e só se importa com a casa

mais as crias que pariu.

Deus (que também sou eu)

ama-me imperfeita e viva da vida

que o sexo dos meus pais me deu

– com amantes, lágrimas, doenças em abundância -,

a mim, de quem nunca se poderá dizer

«puta que te pariu»

porque sou filha de Abril.

Não me confinareis a nada,

que não vos engane a moldura com a imagem

da mãe seráfica com a criança ao colo

– o sexo é a minha linguagem.

Se apenas me amardes a alma,

outros amarão a carne, a musculatura,

a cara desfigurada, a convulsão e as secreções

– essas sim, sagradas.

Entretanto confesso:

o que melhor faço é cuidar dos meus,

mimá-los, acarinhá-los, ouvi-los,

preocupar-me com eles até à zanga.

Sou mãe e estou a ficar velha.

Não espereis de mim coisas novas,

diferentes perspectivas,

mais e mais trabalho,

detesto zingarelhos e informática,

é absurda a panóplia tecnológica

com que atafulhamos a galáxia,

canga que não sara feridas

– as minhas luzem em supernova,

anunciam-me a morte há vidas,

só posso assumi-las,

deixá-las ao ar para não necrosarem.

Mas isto é tão cansativo.

Por isso calo-me, dispo-me,

ponho-me de quatro

– a coluna expande-se-me numa cauda.

Réptil jovem sem mal nem culpa,

adentro-me na videira.

Nestes bastidores

nem dentro nem fora da casa,

estou protegida.

Sou uma osga ora frenética ora estática,

alimento-me aleatoriamente,

a minha lista de afazeres é reduzidíssima.

Observo o interior desde a rama

– se não entro, não me presto à sapatada.

Mas como é entediante esta vida de semi-deusa

em tudo semelhante à de uma morta-viva.

Ao menor roçagar de folhas, pergunto-me

se existirá um outro réptil que acasale comigo.

Catarina Santiago Costa (Lisbon, 1975) is a mother, and the author of Estufa (2015), Tártaro (2016), Filha Febril (2017) [Douda Correria], and Oxigénio (2022) [Flan de Tal]. She has also contributed to several poetry publications.