Isabel de Sá: Poesia e Vida

DENTRO DAS IMAGENS

Os poemas têm veneno na boca

Na estrada da minha vida

plantei a árvore

sem saber quem era.

Em que parte do planeta

há mais ódio? A matéria

erosiva transforma o corpo

e não há regresso. Não

restará um monte de estrume.

Em todo o lado

parece que o mundo em desordem

pouco a pouco enlouqueceu

e os homens atam a corda

à espera que aconteça.

São infelizes

mas não o suficiente.

Não sabem dizer

por que se esquecem de amar.

ESTRADA CRIVADA DE PREGOS

Agora

o meu dever

é criar condições

para retardar

o declínio.

Agora

o meu dever

é fazer de conta

que isto tem sentido.

Há muitos versos

que não devo escrever.

O silêncio

é alegria e tristeza privadas.

Não creio

mas espero o progresso

durante o meu declínio.

Os dias passam

amar ou falecer

não são completamente diferentes.

O coração

massa viscosa

músculo brilhante

feio de tão nojento.

Agora é mesmo assim

fiz o que fiz.

Desolação e júbilo

o círculo intermitente

da vida de todos.

Uma espécie de fábrica

onde rolam as peças

na linha de montagem.

Desistir

nunca destroçado.

No lamaçal

a floração é prodigiosa

cintilante de tão viva.

Diria até

que tem um brilho

capaz de amortecer a paisagem.

As árvores

também parecem irreais

exibem infinita frescura

e solidão.

Desprende-se o pólen

é certo. Mas

há uma secreta devastação.

Folhas iguais a brasas luzindo

estremecem ao vento

à chuva.

O PÓ NEGRO DA CIDADE

As árvores das grandes avenidas

estão cheias do pó negro

do ruído da cidade.

Somos peças da engrenagem;

o homem dos impostos, os trolhas,

o funcionário do banco

que fala comigo, porque se aborrece.

Todas as manhãs, o aspirante

a poeta cumpre um horário

à mesa do café.

Motorizadas, raparigas fumam

a caminho do emprego. O gasóleo

dos transportes públicos e dos

automóveis mais potentes. O luxo

exibido ao fim da tarde. Passam

grupos de pretos

elegantemente vestidos, passeia-se

a loira da hospedaria.

As outras,

pobres, dementes, sentam-se na berma

da estrada. E, no shopping, na loja

de vídeo um velho de aspecto reles

com gel nos cabelos e gravata vermelha.

O pai de família com a sua máquina

de filmar, os cartões de crédito,

o automóvel a prazo.

Saem das barracas, dos bairros

infectos, crianças que emigram

para junto dos semáforos. Vendem-se

na rua adolescentes ainda

de aparência saudável.

Comboios apitam, o vento mudou,

nublou-se o céu. O povo tem

uns trocos, vai a todo o lado.

Tem aquele gosto ofuscante

no vestuário e cospe para o chão.

Na classe política muitos javardos

aprendem com o livre trânsito.

Aparentam serenidade, apenas

um sorriso para encobrir a vergonha,

a pobreza de sermos tão sós. Os hotéis

de luxo repletos de turistas

da Comunidade. Vestem calções,

calçam chinelos de piscina, sentem-se

à vontade na pátria de Camões.

Os rapazes pedem moedas para o almoço,

o jantar, colam-se aos carros, não admitem

a privacidade do cidadão. Andam drogados,

já muito doentes, a boca podre.

Ainda existe o engraxador

perto da estação. Palito entre os dentes,

umas garrafas misturadas ao ofício.

O advogado, o doutor em letras

atravessam a praça compenetrados

na importância do seu papel. O fato,

a gravata, a pasta a estoirar

de documentos. Talvez no meio da confusão

haja uma carta sentimental, a foto

do filho recém-nascido: um futuro

qualquer para iludir a vida mercantil.

TRAGÉDIA E PARAÍSO SEMPRE

O poder redentor das palavras

bala no coração até ao fim

mineral escondido no poço

escuridão no olhar dos amantes.

Crianças vestidas de beleza

estrada cega de luz.

Heróis amarrados a si próprios

rio parado no lodo

tirania do desejo ou privação

a loucura brilhando no rosto.

VOLTAR AO REAL

No triunfo identifica-se a traição.

Melhor será ir ao fundo

procurar debaixo das árvores

na textura da raiz a peste letal.

Falamos todos os dias

cada palavra pode ser uma facada.

Dizia-se e diz-se que não acontece nada:

O pai de família

deixou os sapatos junto ao poço

de madrugada na lama.

Não se podia nomear a palavra

senão o funeral não se fazia.

Era enterrado como um cão.

O filho gatuno

o louco escondido

preso na cave

no galinheiro

reduzido a excremento.

E o doido star

grande paranóico

violador

fantasma da aldeia. O desenterrado.

O ex-marido

insone

cisma até acabar

com aquela que jurou diante do altar

e não cumpriu.

Depois

o irmão mais robusto humilha os outros

fá-los cair

e até mata para ver como é.

Por vezes o avô

vítima de uma erecção

prolonga a visita ao zoológico

e lembra-se de cuidar da neta

do neto deficiente ainda é melhor.

Os casos famosos de castração

canibalismo e necrofilia

são extravagâncias.

Importa a vulgaridade: matança

matança todos os dias.

Facas

caçadeiras

paus

barras de ferro

– criatividade sem limites.

O belo horrível da insanidade.

Numa terriola do interior

mataram à paulada um jovem adulto.

As forças da ordem não queriam saber

disse o povo na televisão

cortou-se o mal pela raiz.

Só a Mãe chora o seu demente.

Sozinha na campa.

Isabel de Sá was born in Esmoriz in 1951. She holds a degree in Fine Arts/Painting from the Faculty of Fine Arts of the University of Porto. She has been exhibiting her paintings since 1977.

In 2005, she gathered in the volume REPETIR O POEMA (Repeating the Poem), published by Quasi Editions, Vila Nova de Famalicão, all the poetry she had published since 1979.

She is represented in the 16th edition of the History of Portuguese Literature by António José Saraiva and Óscar Lopes; in the Dictionary of Portuguese Literature (1st edition) by Álvaro Manuel Machado; in History of Portuguese Literature by Óscar Lopes and Maria de Fátima Marinho (The Contemporary Currents 7. The 70s and 80s, Poetry), by Fernando Pinto do Amaral, Alfa, 2002; and in Portuguese Poems – Anthology of Portuguese Poetry from the 13th to the 21st Century, selection, organization, introduction, and notes by Jorge Reis-Sá and Rui Lage, preface by Vasco Graça Moura, Porto Editora, 2009.She is also represented in the recent anthologies:


THE ONE HUNDRED BEST PORTUGUESE POEMS OF THE LAST ONE HUNDRED YEARS, organized by José Mário Silva, Companhia das Letras, Lisbon, 2017;
OF THE BODY: OTHER HABITATIONS, organized by Ana Luísa Amaral and Marinela Freitas, Assírio & Alvim, Lisbon, 2018;
MANU SCRIPTA, Anthology of Handwritten Poems / 90 Years of the Portuguese Society of Authors, Glaciar Publishing, Lisbon, 2018;
MUJERES POETAS – VOCES DE MÉXICO & PORTUGAL, selected by Tania Jasso Blancas & Sandra Santos, Ediciones Eternos Malabares, Mexico, 2018.

O REAL ARRASA TUDO (Reality Devastates Everything), Elogio da Sombra Collection, directed by Valter Hugo Mãe, COOLBOOKS/Porto Editora, Porto, 2019;
THE JOY OF DOUBT, anthology organized by Graça Martins, Exclamação Publishing, Porto, 2021;
SEED IN HOSTILE SOIL, Officium Lectionis, Porto, 2022;
LO REAL LO ARRASA TODO, Asociación Cultural Garvm, Spain, 2023.

Selected exhibitions:


2002 – 25 Years of Painting, Dois Gallery, curated by Jaime Isidoro – Porto;
2017 – 40 Years of Artistic Career, Artes Solar Sto. António Gallery – Miguel Bombarda Gallery Circuit – Porto;
2018 – Centenary of Amadeo de Souza-Cardoso, Municipal Museum of Espinho;
2019 – Jaime Isidoro Collection – Cerveira and Municipal Museum of Espinho;
2024 – Private Visit / Pre/Post Visual Declinations of the 25th of April – Serralves Museum (curated by Miguel von Hafe Pérez); Contemporary Art Center – 50 Years: Democracy Experienced (curated by Miguel von Hafe Pérez), MNSR, Porto; Post Scriptum on Joy – Almeida Garrett Library (curated by Rita Roque and Jorge Sobrado); II Biennial of Contemporary Art of Trás-os-Montes – Linha D’Água (curated by Ágata Rodrigues).

She was an invited artist at the International Art Biennials of Gaia, the 40 Years of the Cerveira International Art Biennial, and the XXI Cerveira International Art Biennial (2020).

Her work is represented in private and institutional collections, including:
Serralves Museum of Contemporary Art, José Rodrigues Sculptor Foundation, Cerveira Art Biennial Foundation, Jaime Isidoro Collection, and collections of Mário Cláudio, Eugénio de Andrade, Valter Hugo Mãe, Tomás Carneiro, José Mário Brandão, among others.

Awards:


1983 – Nadir Afonso Prize – Chaves Biennial.