NO FOGO DOS OUTROS
Rhum 350
e se me desses um tiro numa sala de espelhos
sem a dama de Xangai e com o Orson Welles
sentado a um canto despindo a sua máscara
e se aspirasses o fumo necrófilo de um cigarro do Bogart
no Casablanca
mas contigo a Bergman não aparece e muito menos o chato
o chato do marido dela
aliás todos juntos nessa noite
e se o pássaro for acossado não matará com certeza o polícia
como fez o Belmondo com instruções do Godard
num filme francês a preto e branco
e se encontrares a orelha cortada do Van Gogh
eu compro-a e devolvo-a a seu dono
para honra e sereníssima glória do seu legítimo cadáver
e se falar com Mozart para perdoar Salieri o medíocre
e todos os outros por crimes menos graves
e se porventura tiver escrito este poema sem a voz de deus
não me encoleirem a vida não me enjaulem a alma
não me enterrem numa vala comum
e muito menos me atirem cal sobre a mortalha
A loucura de Althuser ou de um Outro
estamos doentes
o espaço que sobra da nossa porta
pode ser uma casa
mas geralmente os gatos têm medo
Sobre dois falecidos que tenho nos bolsos
quem foste afinal neste país de enigmas e de fado
neste país onde te conhecem os versos
como quem cospe para o chão ou então come
sardinhas assadas
quem foste afinal
o café e a aguardente já não te esperam no Martinho da Arcada
tão pouco os cigarros que alienavas no fumo inglório de tardes
todas comuns
Ofélia a quotidiana escriturária tua impudica forma de compreender
já não te embaraça
o branco margem do papel continua ainda insubmisso
e o Tejo o rio que passa pela minha aldeia
permanece na solidão insone de horas sem vitórias
o teu silêncio era precário
precário e profundo para tanto fantasma
entendeste-o pela ausência pelo fingimento das palavras
não fingidas dos poemas
por isso te escrevo para dizer
boa noite Fernando Pessoa
há metafísica bastante em não pensar em nada
mas há também as coisas inúteis pelas quais se distinguem
os homens das formigas
num quarto de hotel de uma qualquer cidade de luxo inacabado
ou o esfinge gorda que me faz lembrar
o Mário de Sá Carneiro um outro amigo
Os homens dos barcos
pensa navios pequeno pensa navios
no infinito comovido de quem já não tem navios
e se os tem não são mais do que ilusão
daquele que tudo vê pensa e nada vê
pensa-os pequeno e demora-te
como se carecesses da sua evidência para existir
habitando esse corpo única prisão em ti
até ao fim
pensa-os pequeno como eu que os sigo
quando me ardem os olhos das febres e dos fumos
e do inconsequente orgulho de quem sonha
sem a privacidade necessária para sonhar
pensa-os pequeno sem histórias de marinheiros
sem a bravura dos que tiveram medo
e converteram a pátria com heróis de acaso
assalta-os pequeno com o elementar cuidado
de quem não tem biografia para contar
Soul music
o mundo avança e as responsabilidades envelhecem
queimam Giordano Bruno mas Galileu ludibria a sentença
sou pelas vítimas sempre pelas vítimas
preciso de ter esperança
sou em Berlim pelo muro derrubado
e plenamente pela infância
sou por Pixote que não pediu crédito a deus
nem aos seus falsos juízes
sou pelos despejados na vala comum
Mozart e outros espíritos ainda mais anónimos
sou por Inês de Castro
mas não me falem mas não me falem de Afonso IV
sou pelos amantes
impontualmente todos os amantes
no húmus da minha ou da tua cama
sou pelas putas porque também as amo
sou pelos alfaiates criados balconistas
e todos os que trabalham sem excepção
sou pelos que escrevem nocturnamente nos bares
sou pelos bêbados porque ninguém bebe por si
as suas dúvidas
sou pelos que vivem a vida pelo lado errante do coração
IGARAPÉS
antes da fusão do átomo
e dos hospícios
antes do sujo
e do jugo
preto pobre louco
costurou seus estandartes
entornou da cabaça
pássaro na terra
expulsos do evangelho
nascem na favela
os novos filhos de Job
se a milícia
não declarar delito
a tinta de seus olhos
talvez possam
sustentar a gula
dos deuses do Maracanã
surrado na pele
surrado no nome
sem gatilhos e cachorros
cultuava insolências
nos morros
um beijo carnívoro
descendo o sol
seu andor e seu precipício
dentro dos olhos do lixo
teimam em catar coragem
sem versos cemitério
clemência de sol benefícios
apuram navalhas
descarnam o breu
é de água que falamos quando
lançamos o grito
é do sangue a carne de que somos
expulsos para o trabalho dos dias
mas a noite não nos basta
para esconder o desastre
do que somos em literatura

João Rios was born after lunch, on a scorching August afternoon in 1964. According to his unsuspecting would-be biographers, no earthquake or collective delirium occurred because of this event. A “matchstick boy,” he was never arrested for excessive possession of words or for misappropriation of metaphors. A poet with a dozen published books and just as many seas sailed, he hopes one day to write a poem in a North African desert.
