João Rios: Poemas de “No fogo dos outros” e “Igarapés”

NO FOGO DOS OUTROS

Rhum 350

e se me desses um tiro numa sala de espelhos

sem a dama de Xangai e com o Orson Welles

sentado a um canto despindo a sua máscara

e se aspirasses o fumo necrófilo de um cigarro do Bogart

no Casablanca

mas contigo a Bergman não aparece e muito menos o chato

o chato do marido dela

aliás todos juntos nessa noite

e se o pássaro for acossado não matará com certeza o polícia

como fez o Belmondo com instruções do Godard

num filme francês a preto e branco

e se encontrares a orelha cortada do Van Gogh

 eu compro-a e devolvo-a a seu dono

para honra e sereníssima glória do seu legítimo cadáver

e se falar com Mozart para perdoar Salieri o medíocre

e todos os outros por crimes menos graves

e se porventura tiver escrito este poema sem a voz de deus

não me encoleirem a vida     não me enjaulem a alma

não me enterrem numa vala comum

e muito menos me atirem cal sobre a mortalha

A loucura de Althuser ou de um Outro

estamos doentes

o espaço que sobra da nossa porta

pode ser uma casa

mas geralmente os gatos têm medo

Sobre dois falecidos que tenho nos bolsos

quem foste afinal neste país de enigmas e de fado

 neste país onde te conhecem os versos

como quem cospe para o chão ou então come

 sardinhas assadas

quem foste afinal

o café e a aguardente já não te esperam no Martinho da Arcada

tão pouco os cigarros que alienavas no fumo inglório de tardes

todas comuns

Ofélia a quotidiana escriturária tua impudica forma de compreender

 já não te embaraça

o branco margem do papel continua ainda insubmisso

e o Tejo o rio que passa pela minha aldeia

permanece na solidão insone de horas sem vitórias

o teu silêncio era precário

precário e profundo para tanto fantasma

entendeste-o pela ausência  pelo fingimento das palavras

 não fingidas dos poemas

por isso te escrevo para dizer

boa noite Fernando Pessoa

há metafísica bastante em não pensar em nada

mas há também as coisas inúteis pelas quais se distinguem

os homens das formigas

num quarto de hotel de uma qualquer cidade de luxo inacabado

ou o esfinge gorda que me faz lembrar

o Mário de Sá Carneiro um outro amigo

Os homens dos barcos

pensa navios pequeno pensa navios

no infinito comovido de quem já não tem navios

 e se os tem não são mais do que ilusão

daquele que tudo vê pensa e nada vê

pensa-os pequeno e demora-te

como se carecesses da sua evidência para existir

habitando esse corpo única prisão em ti

até ao fim

pensa-os pequeno como eu que os sigo

quando me ardem os olhos das febres e dos fumos

 e do inconsequente orgulho de quem sonha

sem a privacidade necessária para sonhar

pensa-os pequeno sem histórias de marinheiros

sem a bravura dos que tiveram medo

e converteram a pátria com heróis de acaso

assalta-os pequeno com o elementar cuidado

de quem não tem biografia para contar

Soul music

o mundo avança e as responsabilidades envelhecem

queimam Giordano Bruno mas Galileu ludibria a sentença

sou pelas vítimas sempre pelas vítimas

preciso de ter esperança

sou em Berlim pelo muro derrubado

e plenamente pela infância

sou por Pixote que não pediu crédito a deus

nem aos seus falsos juízes

sou pelos despejados na vala comum

Mozart e outros espíritos ainda mais anónimos

sou por Inês de Castro

mas não me falem  mas não me falem de Afonso IV

sou pelos amantes

impontualmente todos os amantes

no húmus da minha ou da tua cama

sou pelas putas porque também as amo

sou pelos alfaiates criados balconistas

e todos os que trabalham sem excepção

sou pelos que escrevem nocturnamente nos bares

sou pelos bêbados porque ninguém bebe por si

as suas dúvidas

sou pelos que vivem a vida pelo lado errante do coração

IGARAPÉS

antes da fusão do átomo 

e dos hospícios

antes do sujo

e do jugo

preto       pobre        louco

costurou seus estandartes

entornou da cabaça

pássaro na terra

expulsos do evangelho

nascem na favela

os novos filhos de Job

se a milícia

não declarar delito

a tinta de seus olhos

talvez possam

sustentar a gula

dos deuses do Maracanã

surrado na pele

surrado no nome

sem gatilhos e cachorros

cultuava insolências

nos morros

um beijo carnívoro

descendo o sol 

seu andor e seu precipício

dentro dos olhos do lixo

teimam em catar coragem

sem versos cemitério

clemência de sol  benefícios

apuram navalhas 

descarnam o breu

é de água que falamos quando

lançamos o grito

é do sangue a carne de que somos

expulsos para o trabalho dos dias

mas a noite não nos basta

para esconder o desastre

do que somos em literatura

João Rios was born after lunch, on a scorching August afternoon in 1964. According to his unsuspecting would-be biographers, no earthquake or collective delirium occurred because of this event. A “matchstick boy,” he was never arrested for excessive possession of words or for misappropriation of metaphors. A poet with a dozen published books and just as many seas sailed, he hopes one day to write a poem in a North African desert.