Manuella Bezerra de Melo

desidratava-me em leite

sequei e fui colostro

arrematada na luz

já podia se ver além

da couve-flor na minha teta

em estado de putrefação

concedi o amor líquido

que nunca te saciou

(Pés pequenos para tanto corpo, 2018)

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soou-me o alarme as seis

soa tal o uivo de uma cadela

guindasteei-me na força de uma mãe

servi melão pão café leite

ele partiu porque filhos partem

e levou a matéria orgânica dos dias

esvaziei-me e vazia dei a mim

trinta convalescentes minutos

curei-me da morte numa pilha de pratos

uma típica manhã: caríbdis no inox

(Para que roam os cães nessa hecatombe, 2020)

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uma bandeira tremulou uma mulher
que andou o oásis inteiro no seu rastro


uma mulher atravessou um deserto
a cuspir na boca do seu filho com sede
lá encontrou outras mulheres cuja
sede é o motivo das travessias


uma criança com sede carregou uma
mulher no seu lombo até que
pudesse ela chegar ao outro lado
do deserto em segurança desta vez


uma mulher arrasta nas pernas
uma bandeira, uma criança, um deserto

(Sal, 2020)

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espero morrer depois de meus pais

e quando já não mais estiver

que honres tu a minha memória

mas sem desfaçatez, lembre de mim como era

abraçada a uma sanita imunda

devolvendo meu asco infindo

lembre a todos do dinheiro

que queimei em comprimidos

de todo vinho que vomitei

daquela dor sem tamanho

grande como

os meus peitos grandes

como meu rabo imenso

como a minha boca

e que nela tudo cabia

a língua que tanto amava

a língua que odiava

a língua que servia

a língua que cortava

sabe, meu filho

não, você não sabe, mas eu

pichei muros e briguei na rua

invadi propriedades privadas

joguei pedras em vidraças

promovi toda balbúrdia

esganei pescoços doces fingidos

e berrei como uma cabra

arrastei comigo as bandeiras

me arrastaram nas costas, as bandeiras

matei-me a seguir

enforcada aos seus trapos

fui só pirata

sem teto algum para dizer-lhe meu

só crosta de sal untando o rosto

com um mapa cacei tesouros

nos desenhos dos teus ossos

esfarelei-os, mastiguei e

depois cuspi sangue com conhaque

fui só a grande desviante

a vergonha universal

minhas fotos de doutora

não mostravam nunca as paixões

gelatinosas umedecendo minha cara

recordista quinhentos metros medley

precisei te esconder isto parte da vida,

mas sabe, filho, também fui mulher

e esse talvez tenha sido o erro

que me condenou em vida

e que me condena morta

envergonhe-se sem culpa, eu também me envergonho

mas me perdoe um dia, eu também me perdoei

quando já não mais tiver aqui

lembre a todos, vandalize a lápide

alugue um carro de som, meta um laço de fita

pare-o à porta do cemitério

e deixe ser o grande espetáculo do ridículo

a condizer com esta memória que sou

não economize o sentir

cague à cabeça daquela gente

deixe rolar uma fita

que diga que eu não era um terninho

que eu não era um orgulho

não era uma mãe, não era humana

eu era louca, e fui aprisionada

vivi vidas múltiplas

mas sentei na cara do mundo

e furaria muitas delas

sem piedade, pela revolução

sabe filho, fui arrogante

achava todos pouco

achava-os covardes

achava-os medíocres

achava-os aproveitadores

sabe filho, fui ingênua

confiei, fui humilhada

e amei miseravelmente

a humanidade; amar una perra

sabendo a boa bisca que é

mas inventei a gentileza para evitar

as mordidas que era bem capaz de dar

e fui outra a vida inteira

outra que fui me perdi delas todas

mas todas elas te amaram

porque foste tu quem as pariste

já eu, filho, espero mesmo morrer depois de meus pais.

(Carne de pescoço em Para comer com o coração de Dom Pedro, 2024)

#

meu filho morto zanza pela casa
corre veloz, o menino mais rápido do mundo
enfileira os carrinhos da sala até a cozinha
e com os pezinhos pequenos, escala a montanha
imensa das duas paredes que fazem abrir as portas do mundo

aponta a bola para parede
e com o bico da bota acerta a bola que acerta o meu umbigo
os tempos idos são mais duros que os de agora
mais duros que a sola da bota, que o couro da bola
que a cabeça esfacelada


são o fracasso da mãe
a memória da maior alegria que não vingou
a festa do desprezo por si mesmo que urge no amor não recebido

e converte o teu o amor infinito, mãe
a uma migalha sem valor

a linguagem já não esvazia os seus ruídos, mãe
tens de lidar com a memória do menino mais rápido do mundo

mais alegre do mundo mais iluminado do mundo



levanta, tens o teu filho morto para cuidar

ele sussurra a dor que virá nos teus dois ouvidos

logo cedo, ao amanhecer

e a linguagem só projeta o bel

(Inédito)

Manuella Bezerra de Melo is the author of Pés pequenos para tanto corpo (Urutau, 2019; 2023), Para que roam os cães nessa hecatombe (Macabéa, 2020), Um fado atlântico (Urutau, 2022), and Para Comer com o coração de Dom Pedro (Patuá, 2023; Urutau, 2024). She also published the academic essay Nova poesia brasileira: território, disputa e resistência (Zouk, 2023) and contributed to the anthologies Um Brasil ainda em chamas (Contracapa, 2022) and A boca no ouvido de alguém (Através, 2023). She is the curator and organizer of the anthology collection Volta para tua terra (Urutau; 2021, 2022), editor of special projects at Daruê Editorial, and artistic director at Minha Poetry Slam. She holds a Master’s in Literary Theory and a PhD in the Program of Comparative Modernities: Literatures, Arts, and Cultures at the University of Minho, Portugal. Currently, she is the coordinator of the Formiga Critical, Cultural, and Literary Education Project and editor at Revista Formigueiro.