desidratava-me em leite
sequei e fui colostro
arrematada na luz
já podia se ver além
da couve-flor na minha teta
em estado de putrefação
concedi o amor líquido
que nunca te saciou
(Pés pequenos para tanto corpo, 2018)
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soou-me o alarme as seis
soa tal o uivo de uma cadela
guindasteei-me na força de uma mãe
servi melão pão café leite
ele partiu porque filhos partem
e levou a matéria orgânica dos dias
esvaziei-me e vazia dei a mim
trinta convalescentes minutos
curei-me da morte numa pilha de pratos
uma típica manhã: caríbdis no inox
(Para que roam os cães nessa hecatombe, 2020)
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uma bandeira tremulou uma mulher
que andou o oásis inteiro no seu rastro
uma mulher atravessou um deserto
a cuspir na boca do seu filho com sede
lá encontrou outras mulheres cuja
sede é o motivo das travessias
uma criança com sede carregou uma
mulher no seu lombo até que
pudesse ela chegar ao outro lado
do deserto em segurança desta vez
uma mulher arrasta nas pernas
uma bandeira, uma criança, um deserto
(Sal, 2020)
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espero morrer depois de meus pais
e quando já não mais estiver
que honres tu a minha memória
mas sem desfaçatez, lembre de mim como era
abraçada a uma sanita imunda
devolvendo meu asco infindo
lembre a todos do dinheiro
que queimei em comprimidos
de todo vinho que vomitei
daquela dor sem tamanho
grande como
os meus peitos grandes
como meu rabo imenso
como a minha boca
e que nela tudo cabia
a língua que tanto amava
a língua que odiava
a língua que servia
a língua que cortava
sabe, meu filho
não, você não sabe, mas eu
pichei muros e briguei na rua
invadi propriedades privadas
joguei pedras em vidraças
promovi toda balbúrdia
esganei pescoços doces fingidos
e berrei como uma cabra
arrastei comigo as bandeiras
me arrastaram nas costas, as bandeiras
matei-me a seguir
enforcada aos seus trapos
fui só pirata
sem teto algum para dizer-lhe meu
só crosta de sal untando o rosto
com um mapa cacei tesouros
nos desenhos dos teus ossos
esfarelei-os, mastiguei e
depois cuspi sangue com conhaque
fui só a grande desviante
a vergonha universal
minhas fotos de doutora
não mostravam nunca as paixões
gelatinosas umedecendo minha cara
recordista quinhentos metros medley
precisei te esconder isto parte da vida,
mas sabe, filho, também fui mulher
e esse talvez tenha sido o erro
que me condenou em vida
e que me condena morta
envergonhe-se sem culpa, eu também me envergonho
mas me perdoe um dia, eu também me perdoei
quando já não mais tiver aqui
lembre a todos, vandalize a lápide
alugue um carro de som, meta um laço de fita
pare-o à porta do cemitério
e deixe ser o grande espetáculo do ridículo
a condizer com esta memória que sou
não economize o sentir
cague à cabeça daquela gente
deixe rolar uma fita
que diga que eu não era um terninho
que eu não era um orgulho
não era uma mãe, não era humana
eu era louca, e fui aprisionada
vivi vidas múltiplas
mas sentei na cara do mundo
e furaria muitas delas
sem piedade, pela revolução
sabe filho, fui arrogante
achava todos pouco
achava-os covardes
achava-os medíocres
achava-os aproveitadores
sabe filho, fui ingênua
confiei, fui humilhada
e amei miseravelmente
a humanidade; amar una perra
sabendo a boa bisca que é
mas inventei a gentileza para evitar
as mordidas que era bem capaz de dar
e fui outra a vida inteira
outra que fui me perdi delas todas
mas todas elas te amaram
porque foste tu quem as pariste
já eu, filho, espero mesmo morrer depois de meus pais.
(Carne de pescoço em Para comer com o coração de Dom Pedro, 2024)
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meu filho morto zanza pela casa
corre veloz, o menino mais rápido do mundo
enfileira os carrinhos da sala até a cozinha
e com os pezinhos pequenos, escala a montanha
imensa das duas paredes que fazem abrir as portas do mundo
aponta a bola para parede
e com o bico da bota acerta a bola que acerta o meu umbigo
os tempos idos são mais duros que os de agora
mais duros que a sola da bota, que o couro da bola
que a cabeça esfacelada
são o fracasso da mãe
a memória da maior alegria que não vingou
a festa do desprezo por si mesmo que urge no amor não recebido
e converte o teu o amor infinito, mãe
a uma migalha sem valor
a linguagem já não esvazia os seus ruídos, mãe
tens de lidar com a memória do menino mais rápido do mundo
mais alegre do mundo mais iluminado do mundo
levanta, tens o teu filho morto para cuidar
ele sussurra a dor que virá nos teus dois ouvidos
logo cedo, ao amanhecer
e a linguagem só projeta o bel
(Inédito)

Manuella Bezerra de Melo is the author of Pés pequenos para tanto corpo (Urutau, 2019; 2023), Para que roam os cães nessa hecatombe (Macabéa, 2020), Um fado atlântico (Urutau, 2022), and Para Comer com o coração de Dom Pedro (Patuá, 2023; Urutau, 2024). She also published the academic essay Nova poesia brasileira: território, disputa e resistência (Zouk, 2023) and contributed to the anthologies Um Brasil ainda em chamas (Contracapa, 2022) and A boca no ouvido de alguém (Através, 2023). She is the curator and organizer of the anthology collection Volta para tua terra (Urutau; 2021, 2022), editor of special projects at Daruê Editorial, and artistic director at Minha Poetry Slam. She holds a Master’s in Literary Theory and a PhD in the Program of Comparative Modernities: Literatures, Arts, and Cultures at the University of Minho, Portugal. Currently, she is the coordinator of the Formiga Critical, Cultural, and Literary Education Project and editor at Revista Formigueiro.
