O mundo acabou, meu amor

O mundo acabou, meu amor

cortaram as asas aos anjos

e puseram os cornos ao demónio

os gatos são asfixiados à nascença

em alguidares de água barrenta

e os cães abandonados nas matas

ao largo das vilas e nos centros urbanos.

O mundo acabou, meu amor

as pessoas põem açúcar no café

ananás e banana na pizza

bebem cerveja sem álcool

compram calças previamente rasgadas

e já não se suicidam por amor

nem fodem de olhos fechados.

O mundo acabou, meu amor

os recreios têm chão de cimento

as piscinas já não sabem a xixi

os baloiços não causam vertigem

os cowboys não usam chapéu

a Bíblia foi despromovida a literatura

as flores têm silhuetas de plástico

os animais já não se sentem em casa

e olham para nós com ar desconfiado.

O mundo acabou, meu amor

fizeram da arte um deus inútil

da corrupção um desporto nacional

da escola um conceito happy meal

do audiobook uma calculadora de carneiros

os discos já não se escutam de lés a lés

os artistas estão sempre online

e o Português Amarelo foi descontinuado.

O mundo acabou, meu amor

acabaram as guerras, o Twitter

o assédio sexual, Santa Claus e Siddhartha

a Bolsa de Wall Street colapsou e faliu

fali eu, faliste tu, falimos nós

e a mercearia dos nosso avós

substituíram os olhos pelas objectivas

os cafés pelo Whatsapp

os bartenders pelos psiquiatras

o sonho pela cocaína, Fernando

e a morte já não emociona por escrito.

O mundo acabou, meu amor

e nós também.

Obrigado

Obrigado

capitalismo, paraísos fiscais

imi, iva, irs, multinacionais

obrigado poluição, xenofobia, corrupção

muito obrigado.

Obrigado

era digital, microondas, mp3

cibersexualidade, teste de gravidez usb

obrigado silicone, fitness, botox, detox

muito obrigado.

Obrigado

reality shows, telenovelas, publicidade

activismo de sofá, crises de ansiedade

obrigado hipocondria, drogas legais, pandemia       

muito obrigado.

Obrigado

visualizações, emoji, story e like

criadores de opinião, felicidade/gigabyte

obrigado violência, solidão, decadência

muito obrigado.

Obrigado

cartões de crédito, débito etc

mitomania, egomania, pela morte do profeta

obrigado indie alternativo neo-pós-progressivo

muito obrigado.

Obrigado, muito obrigado.

Aveiro – Porto – São Bento

Aveiro água-pé

tem Cacia ao calcanhar

Canelas canetas

Salreu joelho altar

Estarreja nas coxas

Avanca nas ancas

Válega no ventre

que dos 2 fará 3

Ovar, Ovar, Ovar:

a solidão outra vez.

Cortegraça de umbigo

tem Espinho na mão

Granja massa cotovelo

Valadares axila em pregão

Gaia – Devesas boca

General Torres orelha nariz

Porto – Campanhã

olhos com que sempre me vês

Porto – São Bento:

a solidão outra vez.

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Mudando de Assunto

O bardo do quotidiano folheia uma colecção de postais e corações rasgados, enquanto tacteia alguns trocados amigalhados na algibeira. Quando for criança, pensa para si, talvez tenha uma mãe que me segure no colo e me embale “Não chores, filho! É só o mundo”. Mas, mudando de assunto. Eu agora quando vou à minha terra, já só trago é saudades, mas depois lá me distraio e dou por mim feliz, a pensar sobre o dia em que fiquei sem gasolina nas asas ou na miúda do karaoke com as mamas de fora, mais nova do que eu 10 kg, a gritar ao microfone “875 é SLB ao contrário”. E nada contra isso, todos devemos acreditar em alguma coisa. Eu, por exemplo, acredito que os balões só voam porque estão cheios e tudo o resto são estórias que minto a mim mesmo, antes de adormecer. Mas, mudando de assunto. Não querendo soar patriótico, nem dar a entender que estou verdadeiramente aqui, os semáforos e a sua disposição cromática despertam em mim uma vontade irresistível de cantar “A Portuguesa”. E eu ali, mais bêbedo do que triste, deitado na estrada, a lua por candeeiro, o alcatrão por sofá e uma vida sem final à Nicholas Sparks. Acendo um cigarro – o chupa-chupa dos sozinhos – e fico a fazer argolas de fumo, como aqueles peixes balão de focinhos imperialistas a desenhar mandalas no fundo do mar. Mas, mudando de assunto. As ressacas curam-se na noite anterior e as calças de cinta subida, não dão cu, mas escondem a barriga. Para que lado é Cucujães? O amor da minha vida espera por mim e ainda tenho que passar no sapateiro. E, enquanto vos confesso tudo isto, ao longe, alguém ensaia novas melodias no piano dos meus cabelos, uns brancos, outros pretos.

Sonhos Líquidos

Masturbei-me muitas vezes a pensar na prof. de Físico-Química

aliás, eu e praticamente todos os meus colegas de turma

aquele rabo era o nosso mundo —

a justificação dos colectivos 3 à disciplina.

Em sonhos (por vezes, molhados)

cheguei até a casar-me com ela:

eu tinha barba

e ela soltava o cabelo

ao chegar a casa, depois da escola.

Tínhamos um Alfa Romeo

e 3 filhos (Chico, Henrique e Léo)

que cheguei quase a amar

de tantas vezes os sonhar.

Lembro-me, como se fosse ontem,

das férias de sonho em Aljezur

(os miúdos ficaram com os avós)

fizemos amor em toda a parte:

cozinha, chuveiro, sofá

praia, restaurante, carro.

Enfim…

não sei se era química

ou meramente físico

mas eu tinha um fraco por ela.

Mais tarde, passados alguns anos

soube à conversa com o Guilherme

que ela estava doente, cancro terminal.

Voltei a masturbar-me

mas nunca mais foi a mesma coisa.

A Melhor das Mortes Possíveis

Bebemos, comemos

fodemos, lemos jornais

à espera de primaveras

e comboios para outras estações.

Amamos, pensamos

matamos, somos sentimentais

à hora da despedida

nos cafés às portas da noite.

Trocamos promessas

criamos ilusões

dormimos à pressa

temos sonhos

acordamos equações

e já nem à própria vida

nos mostramos sensíveis

à procura da melhor das mortes possíveis.


Calamos, coramos

rezamos, falamos demais

à custa do futuro

do tiro no escuro

que autografámos.

Choramos, sorrimos

mentimos, somos banais

amantes de miragens

eternas viagens

ao fim da noite.

Construímos prisões

monumentos à liberdade

vivemos à margem

sem mentiras nem verdades

e já nem à própria vida

nos mostramos sensíveis

à procura da melhor das mortes possíveis.

Bicho-da-Sede
(Bombyx vini, Café Apocalipse, Dionísio)

               Dependente do ser humano para a sua reprodução, o Bicho-da-Sede é de extrema importância económica. A sedocultura existe há milhares de anos, tendo começado na Mesopotâmia e daí proliferado para o resto do mundo. Existem 3 tipos de Bicho-da-Sede: Univoltina (bebe uma vez por semana), Bivoltina (bebe 2 vezes por semana) e Polivoltina (bebe todos os dias). Ao contrário dos dois primeiros, que bebem para socializar e encontrar companhia, o Polivoltina bebe para esquecer.

A vida do Bicho-da-Sede atravessa os seguintes estádios: 1) moagem, 2) fermentação e destilação, 3) cuba e 4) garrafa, em que voa para as prateleiras dos supermercados, restaurantes e bares, aterrando nas nossas mãos. As garrafas são constituídas por 3 tagmatas:

  • Gargalo — selado com rolha ou carica, serve para a cúpula entre garrafas e tem uma função sensorial facultativa.
  • Bojo — serve para transportar o álcool e albergar as asas, características dos garrafões de 5 litros. As asas não servem para beber, mas para arranjar parceiros.
  • Base — contém os órgãos depressivos e o sistema nervoso. Na base, as garrafas têm duas glândulas odoríferas, que servem para atrair novas garrafas. O cheiro libertado denomina-se “bafo a álcool”.

Prognóstico

Há um dia no futuro

lembro-me como se tivesse sido ontem

Amália canta de xaile em Alfama

Jim Morrison é avistado nos Alpes

e as irmãs do destino de Macbeth

usam duas argolas de esperança nas orelhas.

Há um dia no futuro

ainda hoje me lembro desse dia

os influencers estão no desemprego

os gurus do bem-estar emigram para Marte

e o amor é um panteão sagrado

não um prato onde cuspir.

Há um dia no futuro

o passado é uma noite mal passada

alguém grafita no buraco do ozono

“let’s make life great again”

os jardins zoológicos fecham as portas

e a Adega Evaristo reabre com nova gerência.

Sim, há um dia no futuro

ou talvez até seja uma noite

o mundo adormece em paz

eu tenho dedos com super-poderes

tu cheiras a ambientador de jasmim

e o coração é uma loja de bombons.

Há um dia no futuro

que começa agora.

Born in Aveiro in 1990, Vítor Hugo belongs to the new generation of Portuguese artists who combine the roles of singer, guitarist, and songwriter. He began learning guitar at the age of 10 and, in 2009, enrolled at the London Center of Contemporary Music.

Upon returning to Portugal, he founded The Underdogs, a band with whom he released “Silence” (2011), “Songs for the Few” (2012), and “Blame It All on Jazz” (2014). At the same time, he began his journey with The Moonshiners, with whom he recorded five albums: their self-titled debut (2013); “Good News for Girls Who Have No Sex-Appeal” (2015); “Prohibition Edition” (2018); “Boot Legs” (2022); and “Monkey’s Poetry” (2024), produced by The Legendary Tigerman.

Under the alter ego Silent Preacher, in a more intimate and solo register, he released the album “The Other Side of Nothing” (2013). “Positivamente”, featuring the singles “Auto-retrato” and “Obituário”, is his debut album under his own name and in Portuguese. In 2019, he launched the Portuguese traditional music project SIRICAIA, with whom he released “Família Fandango” and “Manta de Retalhos”.

Live, he performs on bass, guitar, and synthesizers with the three-drummer band Sangue Suor, who recently released the album “O Salto”, a co-production with Theatro Circo. In 2024, he became a founding member of Bairro do Amor, a tribute project to Jorge Palma.

At the moment, he is touring with “Feijoada de Canções”, a show that brings together music from all his projects as well as songs by some of his favorite songwriters. Voice, guitar, and harmonica — the song, raw and bare. With LES A LES, the project that fuses machine and word, he has just released “PET”.