OS OMBROS MODULAM O VENTO
Entristece
a tua tristeza
− e canta
(os ombros modulam o vento
modulam a noite
a soberana voz
dos horizontes)
entristece
a tua tristeza
− e canta
RIO CUTATO
Nenhum rio é como esse
o rosto magnificente da infância.
Suas quedas de água –
minha pátria inaugural
da Poesia.
− Leveza intuída do mundo.
A poder de luas e relâmpagos a sol inteiro
fulgura –
pelo mover das águas rápidas,
dançadas, esfuziantes
− e ao fundo: raiz e pedra alta
de harmonia deslumbrada:
o lodo magnético dos peixes,
enquanto as águas passam, ressoam
em seu caranguejo lunar.
Toda a beleza se canibaliza aqui,
e canta.
Árvore inaudita – sombra
que sobe da Terra aos frutos: seiva pura
em haste e folhagem,
tronco vivo fincado na rocha,
abrindo-se,
rasgando as entranhas da pedra alta.
− Silencioso canto dos ancestrais.
●
E eu vi
o canto e a manhã primeira irromperem
do redivivo coração da pedra alta
em seu aroma sábio,
pela raiz.
Eu vi.
Era pela raiz que as coisas pensavam
a exacta palavra de seus nomes.
− E ensinam, devagar,
a boca
a soletrá-los
pela doçura iluminada dos frutos
− nocha, maboque, cassússua,
churiungo[1] −,
sobre a pedra do jacaré.
O alfabeto da Terra semeia seus dons e lucidez.
− Implacáveis. Os dedos
apreendem seus astros caligráficos: as veias
e artérias primitivas da pedra
e do fogo
batendo em mim
a Poesia inteira.
Absoluta.
− A cabeça do rio.
E nenhum rio é como esse
o rosto magnificente da infância,
a pátria inaugural da Poesia.
31.1.2014-8.2.2017
À FLOR DO FOGO
Bate o desejo suas lentas águas fundas,
e desata sobre nós: seus laços vivos – sôfregas: suas teias,
trançadas de relâmpagos. Digo:
aqui tens o colo que te dou.
E tu alongas o teu corpo em oferenda pelo chão:
o olhar que súbito trespassa,
implode – aferindo o rumor tocado
pelo ar − ao alto e em redor.
E eu revolvo os teus cabelos sentados no meu colo,
como quem perscruta um rio desde a infância,
e agora plantasse horizontes no teu rosto.
− Fecha os teus olhos, meu amor,
fecha os teus olhos, e abre − perfeita –
a lentíssima nudez – em flor
e fruto,
dançada.
As mãos devoram as mãos – devoram
suas marcas, seus ofícios: alimentam-se
do refazer esculpido e trabalhado dos corpos,
do estremecimento abrupto dos sentidos.
As línguas iluminam o sal dulcíssimo da pele:
como relâmpagos navegando
alucinados – procuram:
a secreta e nocturna flor do fogo.
E o ar perfuma-se de nós
como um bosque das suas árvores atentas.
E passam beijos que se demoram.
A respiração crepita
num tremor jubiloso.
E todo o chão é lençol e mar − e dentro de ti,
eu te me dou inteiro
− oh meu amor
acabado de nascer!
3.1.2013-15.9.2021
FALAM, CONVERSAM O MUNDO
Para Arnaldo Santos e José Luandino Vieira,
Meninos Mais-Velhos dos Pássaros e dos Rios,
na celebração dos seus 80 anos de Vida e Poesia
Falam,
conversam o mundo.
E do segredo mínimo
das águas – correndo,
ascende o brilho
do ouro submerso.
Estão sentados no fogo antigo
da Terra – escavam,
retiram as palavras
do seu estado larvar,
atam seus cordões umbilicais a ventres
inaugurais e púberes:
− A palavra,
dizem: procura-a
na concha do ouvido.
Que ela cante – expedita e natural.
Estão sentados no fogo antigo
da Terra – a voz é o seu poder
e bordão:
caligrafia aérea e cantante
insculpida no sangue e sua dança
− batendo, fluindo, sustentando
a escultural melodia da Terra:
de geração em geração: o mundo,
nosso – canto,
poema.
E que a palavra seja –
modelando-se por águas noctívagas,
iluminadas,
ao rés do vento: epopeia breve
− que o tempo alonga,
acrescenta,
rememora – a voz.
E estas mãos:
sua inumerável herança.
8.9.2012-29.7.2013
OS CINCO SENTIDOS
Todos os dias o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu.
Provérbio Bambara, Mali
Não há dia nenhum
em que os teus ouvidos
não oiçam
aquilo que nunca antes
lhes foi dado escutar.
Não há dia nenhum
em que os teus olhos
não vejam
aquilo que nunca antes
lhes foi dado observar.
Não há dia nenhum
em que o teu nariz
não inale
um odor que nunca antes
lhe foi dado a conhecer.
Não há dia nenhum
em que as tuas mãos
não tocam
em algo que nunca antes
lhes foi dado acariciar.
Não há dia nenhum
em que a tua boca
não prove
um sabor que nunca antes
lhe foi dado a degustar.
Não há dia nenhum
em que a vida,
o mundo,
os cinco sentidos
não te surpreendam.
− Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
Não há dia nenhum!
[1] Nomes de frutos selvagens do Sul de Angola.

Zetho Cunha Gonçalves (Huambo, Angola, 1960) is a poet, author of children’s and young adult literature, anthologist, poetry translator, and editor. Since 1979, he has published around 40 books, including the following poetry collections: A Palavra Exuberante (The Exuberant Word), 2004; Sortilégios da Terra: Canto de Narração e Exemplo (Earth’s Spells: Song of Narration and Example), 2007; Rio Sem Margem: Poesia da Tradição Oral (River Without Shore: Poetry of the Oral Tradition), 2011; Terra: Sortilégios (Earth: Spells), 2013; Rio Sem Margem: Poesia da Tradição Oral. Livro II (River Without Shore: Poetry of the Oral Tradition, Book II), 2013; Noite Vertical (Vertical Night), 2017 [winner of the 2019 dstangola/Camões First Prize]; O Sábio de Bandiagara: Esconjuros, Ebriedades e Ofícios (The Sage of Bandiagara: Enchantments, Intoxications, and Crafts), 2018; O Leopardo Morre com as suas Cores (The Leopard Dies with Its Colors), 2019; Alumbramentos (Illuminations), 2020; Respiração Suspensa (Suspended Breath), 2021; Noite Vertical. Poemas Reunidos (1979–2021) [Vertical Night. Collected Poems (1979–2021)], 2022; 2nd edition, 2025; Os Meus Comboios (My Trains), 2023.
Among his works for children and young readers, notable titles include: Debaixo do Arco-íris Não Passa Ninguém (No One Passes Under the Rainbow) — poems, 2006; A Caçada Real (The Royal Hunt) — play, 2007; Brincando, Brincando, Não Tem Macaco Troglodita (Playing, Playing, There Is No Troglodyte Monkey) — poems, 2011; A Vassoura do Ar Encantado (The Broom of the Enchanted Air) — story, 2012; Os Sete Poemas do Papagaio de Cabinda (The Seven Poems of the Parrot from Cabinda), 2012; Rio Sem Margem: Poesia da Tradição Oral Africana (River Without Shore: Poetry of the African Oral Tradition), 2013; Dima, o Passarinho que Criou o Mundo: Mitos, Contos e Lendas dos Países de Língua Portuguesa (Dima, the Little Bird Who Created the World: Myths, Tales, and Legends from Portuguese-Speaking Countries) — anthology, 2013; Aqui Há Dinossauro (There’s a Dinosaur Here) — short story, 2020.
He has translated, among many others, poets such as Antonio Carvajal, Vicente Huidobro, Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke, Mihai Eminescu, Anna Akhmatova, Marina Tsvetaeva, and Jalal-Al-Din Rumi, whose Rubaiyat. Odes à Embriaguez Divina (Rubaiyat. Odes to Divine Intoxication) he published in 2019 (2nd edition, 2024). He also translated Canções da Terra e do Exílio (Songs of the Earth and Exile) by Agnès Agboton, 2024; ABC da Leitura (ABC of Reading) by Ezra Pound (co-translation), 2025; and Kaydara by Amadou Hampâté Bâ (co-translation), 2025.
He has edited works by Portuguese poets and writers such as António José Forte, Luís Pignatelli, Natália Correia, Mário Cesariny, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Ernesto Sampaio, and the Mozambican poet Luís Carlos Patraquim. He also organized the Collected Works of the Angolan poet and nationalist António Jacinto (a commemorative edition marking the centenary of his birth and the 50th anniversary of Angola’s independence), 2025; António Jacinto, Poeta e Guerrilheiro: Livro do Centenário de Nascimento e da Comemoração dos 50 Anos de Independência de Angola (António Jacinto, Poet and Guerrilla Fighter: Book for the Centenary of His Birth and the 50th Anniversary of Angola’s Independence), 2025; and Os Poemas: Íntimos e Pessoais (The Poems: Intimate and Personal) by José Luandino Vieira (forthcoming).
His work appears in various anthologies, and he has contributed to newspapers and literary journals in Angola, Brazil, Mozambique, Portugal, Macau, Italy, Spain, and Germany. His poetry has been translated into German, Chinese, Spanish, Italian, and Yiddish.
His name was proposed for the 2018 Nobel Prize in Literature. He is fully dedicated to poetic and literary creation.
