BERLENGAS
Manuel Jubilão era um homem corroído pelo stress. Depois de três casamentos e três enfartes (alternadamente), depois de vários empregos que lhe consumiam toda a paz de espírito e de muitas noites em claro, resolveu-se a seguir o conselho da sua médica de família e procurar um lugar isolado e tranquilo para recuperar os nervos:
– Mas não tenha pressa de regressar a casa, senhor Jubilão – aconselhou a médica com carinho maternal.
E mais lhe disse: que aproveitasse a extensão das tardes, que se desse a vagarosos vagares, que aprendesse a espreguiçar-se com os animais; que acariciasse folhas e ervas, que assim molhasse as polpas dos dedos e bebesse dessa humidade vegetal, que escutasse os finos estalidos do mundo no seu rodar infindo, pois só assim instauraria um novo ritmo interno imprescindível aos delicados equilíbrios mentais.
Manuel Jubilão estudou minuciosamente o mapa do território nacional em busca duma ilha onde gozasse dos privilégios solitários do náufrago. Fuzeta? Ilha do Pessegueiro? Corvo? Desertas? Acabaria por se inclinar para as Berlengas. Vestiu as suas bermudas, encheu os bolsos com os berlindes da infância e rumou às ilhas onde só teria por companhia as gaivotas e um ou outro turista que gosta de enjoar de barco.
– Que bem se está nas Berlengas! – exclamou ao vento, obtendo um leve aceno de concordância do velho farol.
Estendeu o corpo ao sol e entregou-se ao puro fazer nada, aconchegado por um marulhar marítimo que era a voz líquida das origens. Beliscou-se, a ver se ainda existia ou se estava no meio de um sonho. Constatou então como a escolha se revelara acertada: nas Berlengas as manhãs eram molengas e as tardes lentas – berlentas; as noites longas – berlongas – e as manhãs acordavam lindas – berlindas. Retirou então os berlindes das bermudas, sacou o pénis pelo lado esquerdo do calção e, tomado duma liberdade que nunca antes experimentara, mijou em arco, espetando pérolas amareladas em pleno coração do vento. Que berleza!
NASCIMENTO
Já mergulhámos em vários momentos fulcrais da vida de Manuel Jubilão, mas em nenhum se esclareceu aquele sem o qual os outros não teriam acontecido: o seu nascimento. Pois saibamos que Jubilão entrou logo mal no mundo: enrolado no cordão umbilical, roxo e musguento, saindo de pés. A parteira, absorvida pelas imagens em direto do jogo decisivo do campeonato, deixara-lhe apertar o crânio naquela luta titânica entrecoxas. Aos solavancos pela mucosa vaginal abaixo, o seu primeiro olhar ao assomar foi de desconfiança. E a isso se deveu o intenso piscar de olhos, e não à excessiva luz que fazia cá fora.
Também o batismo não foi fácil. Esteve para ser Berto. Não Alberto. Nem Eriberto, Roberto, Adalberto, Herberto, Humberto – só Berto. Seu tio Fagundes, antigo fuzileiro com medalhas ganhas nas ex-colónias, vira-o às primeiras horas, ainda maltratado da refrega e das distrações da parteira. Com olho clínico treinado a detetar mazelas de combates, disse em voz troante:
– Inda agora nasceu e já levou uma catanada! Traz o sobrolho aberto!
– Aberto. A-berto. Bertoaberto…berto. Berto… Soletrou a sua mãe, ainda no leito, naquele estado mental translúcido próprio de quem acabou de parir.
Fagundes, passeando os olhos pelo cu duma enfermeira estagiária que acabava de entrar, disparou-lhe com ar displicente:
– Ó menina! Já viu o meu sobrinho? Vem com o sobrolho aberto mas é um lindo rapaz! É destes que precisamos para irem para a guerra! Agora só nascem paneleiros…
Retornando à vigília plena, a mulher que acabara de dar à luz olhou o seu filho e uma alegria cintilante tomou-a desde as entranhas.
– Estou em júbilo!
Fagundes olhou-a com um súbito – e raríssimo em si – assomo de inteligência:
– Isso! Júbilo. Júbilo não – Jubilão!
E assim nasceu o nome daquele que ainda agora nascera: Jubilão. Manuel Jubilão Portocarrero de Altamiro, Manuel Jubilão para os amigos.
O FILÓSOFO INFANTIL
Muito antes de fazer retiros nas Berlengas, já Manuel Jubilão revelava grande propensão para a filosofia. Foi marcante o episódio ocorrido ainda na escola primária, quando a professora o advertiu pelo seu alheamento:
– O menino está com a cabeça sempre na lua!
– E não posso, senhora professora?
– Não.
– Mas a minha mãe não me deixa estar com a cabeça ao sol. Onde posso então pôr a cabeça, senhora professora?
– Olhe, ponha a cabeça no… no… Não vê que assim distraído não aprende nada?
– Mas o nada também é fonte de aprendizagem – respondeu Manuel Jubilão, com os olhinhos piscos de tanto fitar o infinito.
Afadigada a explicar as contas de dividir, a professora não parou um segundo para notar o alcance extraordinário daquela resposta.
– Ai é? Pois então leva como trabalho de casa fazer uma redação sobre o nada!
– Sobre o… sobre eh…eh…eh, sobre o nada?
– Sim. E livre-se de me aparecer aqui sem nada!
– Eh…eh… nem por nada abdicaria de uma redação sobre o nada!
A professora, embora sem transparecer, notou o seu receio – e mais ainda o insólito da palavra abdicar em criança tão tenra.
No dia seguinte Manuel Jubilão entrou na sala de aula com ar nietchzeiano e entregou à professora uma folha que dizia assim:
Nada aparece do nada. Exceto o nada, claro. O nada, esse sim, aparece do nada, dado que para haver nada não é preciso nada.
Tudo está em tudo. Mas nem tudo. Contudo, mesmo o nem tudo está no tudo que está em tudo.
E o nada, está dentro ou fora do tudo?
A professora, ajustando os óculos com mãos trementes, releu várias vezes. No final foi apenas capaz de dizer:
– Estou esputefacta!
– Estupefacta, senhora professora – corrigiu Manuel Jubilão.
– O menino está-me a corrigir?
– Não abdicaria de o fazer em nome da correção ortopantofonética e linguística, de modo a salvar a integridade da semântica, senhora professora.
Desalentada, a professora afocinhou de novo nas contas de dividir. Na ida para casa parou na retrosaria do Pereira e comprou um ovo de madeira. Decidida a não mais voltar à escola, rendeu-se ao nada e nunca mais pararia de coser meias.
O FILÓSOFO PÚBERE
Terminada a escola primária, Manuel Jubilão não cessaria de manifestar uma inusitada precocidade filosofal. Na escola onde foi frequentar o 2º ciclo, o seu brilho irradiaria logo na primeira semana, quando a professora de língua portuguesa testou as capacidades de expressão escrita dos alunos mandando redigir uma composição livre:
– Escolham o tema que quiserem. Tomem uma ideia em mãos e…
– Tomamos o quê, senhora professora? – perguntou um menino míope.
– Ehh… É uma maneira de dizer. O que eu quero é ver se Têm mão para a escrita – simplificou a professora.
– Ah! Assim já estou a ver! – suspirou aliviado.
Mas não estava, porque era realmente míope. Quem já estava a ver tudo era Manuel Jubilão. O tema pusera-o a professora ali à mão de semear: as mãos. Metendo mãos à obra, em menos de 10 minutos apresentou uma composição de mão cheia:
Que vêm a ser afinal as nossas mãos? E os nossos pés? Na ausência de topologias definicionais tudo é arbitrário e o mundo um albergue espanhol que pouco sobe acima da pocilga. Teremos pois de definir cada ente em relação à sua circunvizinhança, extraindo como corolário a limpidez conceptual.
Se tivéssemos as mãos nas pernas as mãos seriam pés; se tivéssemos os pés nos braços, os pés seriam mãos. Assim se metem os pés pelas mãos – violência insuportável para quem cultiva o apolíneo e luta pela inteireza da razão.
Amparando a cabeça com as mãos, a professora afocinhou nas composições dos outros alunos. Seria ela que era estúpida? Estaria a perder a mão para a sua profissão? Na ida para casa, desorientada, conduziu pela contramão. Passou pelo Pereira da retrosaria, comprou um ovo de madeira e nunca mais pararia de coser meias.
PRIMEIRAS PAIXÕES
Durante anos, Manuel Jubilão desdenhara dos gabinetes de estética. Tudo mariquices, pensava consigo, e dizia-o alto no café. Coisa para gajas, acrescentava. E gajas finas, dondocas, meninas da Foz. Até ao dia em que conheceu uma manicure. Foi num festival de verão, embalado pelo Still loving you.
– Têm unhas para as guitarras! – gritou a manicure, com o rosto a esfuziar de comoção.
Era mais uma digressão dos Scorpions, que estavam em Portugal pela sexagésima primeira vez e espalhavam ao vento o apelo sensual das suas baladas. Manuel Jubilão olhou-a de soslaio. Mas a desconfiança desvaneceu-se, esmagada pela sua pele tratada pelas melhores máscaras de argila e pelas fragrâncias que se lhe soltavam dos sovacos. Esteve quase a namorar com ela, mas o Still loving you só durou sete minutos e a manicure escapou-lhe por uma unha negra.
Mas a paixão está escrita nas estrelas: no festival do ano seguinte conheceu uma depiladora, durante o sexagésimo segundo concerto dos Scorpions em Portugal.
– Estou com os pelos todos eriçados! – gritou a depiladora, com o rosto a esfuziar de comoção.
Manuel Jubilão olhou-a de soslaio. Mas a desconfiança desvaneceu-se, derretida como cera pelas pernas da depiladora, impecavelmente depiladas. Deslizou para junto dela.
– Desta vez ninguém me vai passar a perna! – pensou alto para consigo.
– O quê? – gritou a depiladora, tentando sobrepor-se ao riff de guitarras que levava a multidão ao rubro.
Jubilão nem teve tempo de responder, engolido pelos primeiros acordes de Still loving you. E bastariam aqueles sete minutos mágicos para o fulgurante desenlace se dar num abrir e fechar de olhos: habituada a fazer meia perna, a depiladora fez-lhe a perna do meio com uma perna às costas.

João Habitualmente was born in Porto in 1961. Poetry is the most constant genre in his writing, with his first book published in 1995. The poetry nights at Pinguim Café and the Quintas de Leitura at the Teatro do Campo Alegre in Porto are the main places of his poetic militancy. Over the years, he has made inroads into other genres, from the diary to microfiction and the short story. Under the pen name Luís Fernandes, he wrote travel chronicles and was a press columnist.
